segunda-feira, setembro 29, 2014

Entre o Temor e o Tremor

Quando ele puxa catarro para escarrar, parece uma cigarra ensandecida numa tarde de primavera. Maldito vizinho e malditas paredes sem isolamento acústico. Ele sempre derruba a escova de dente, o pente e o pote de gel. Eu sei. Dá pra ouvir. Sua mulher é mais cuidadosa com detalhes: não deixa a tampa do vaso despencar em estrondoso barulho, não fica praguejando enquanto mija ou caga (não sei), parece uma monja dos toiletes. Serena enquanto caga, nem deve feder. Cocozinho de anjo.

Vez em quando ela grita algo para o desgraçado do catarrento do companheiro dela, mas é incompreensível. Com certeza ela manda ele colocar a água pra ferver, "bota sal e óleo, hein? não quero macarrão grudado", ela deve gritar, enquanto passa creme nas pernas. Toalha enrolada na cabeça, como se fosse um turbante desengonçado. E as mãos delicadas passam lentamente aquele creme cheiroso em cada poro, milhares de poros de seus pés, canelas, coxas, joelhos. Bunda. Mãos, braços, cotovelos. Aquele cotovelo seco e enrugado. Eu tenho certeza disso.

Mas o que esquenta minha relação com eles é quando, em pleno banho, ouço batidas repetidas. Danados. Ah, seus danados. Eles batem na fina parede que nos separa. Ela geme (aí a monja vira puta mesmo), ele grita, maltrata aquela bunda meia-boca com belas bofetadas. Deve doer, porque eu ouço o chuveiro castiga-los com sua água quente e cá entre nós, aquelas bofetadas lá, doem em mim até. Ele geme e urra, grita enlouquecidamente. Ela começa a piar, como se fosse um bem-te-vi que só fala "bem". Imagine que bizarro. "Bem - bem - bem - bem". Esquece. Era melhor ter usado outra comparação. Do tipo: parece um sabiá sendo esganado. Aliás, isso é uma boa expressão chula pra sexo: "vou esganar o sabiá". Não. Pensando bem, parece mais uma tradução para punheta. Enfim, vou anotar isso para as rodas de bar. Mas voltando ao casal de vizinhos, fiquei ressabiado junto à parede, "juro que se essa parede desmoronar e eles caírem aqui, já engato meu pau na boca dela". Meu território, minhas regras. Não quero saber, não tem papo. Vai tomar pinto na garganta pra apender a parar de piar no banheiro. Falando em pinto, tenho uma comparação melhor: o som que ela emite, é como se fosse uma cambada de pintinhos, sabe? Aquela barulheira, aqueles piados intermináveis. Um absurdo. Mas aquela loucura no banheiro deles, aquele eco, a água se chocando com o chão, a púbis dele se chocando contra a bunda meia-boca dela, sim, púbis e bunda batizados com água de imoralidade, meu santo Cristo, sinto um reboliço. Nhec, nhec, nhec. Tchac, tchac, tchac. Eu começo a passar sabonete na cabeça , na cabeça de cima, diga-se de passagem. Perco a concentração, a noção do tempo, o banho se prolonga e meus dedos ficam enrugados, como se fossem dez mini sacos escrotais nas extremidades de minhas mãos. Mas não arredo o pé. De repente um silêncio. Fico lá, com a orelha na parede fria, meus cabelos lambidos, penteados pelos jatos de água intermináveis. E eu fico lá. Entre o temor e o tremor. Temo que eles me descubram em minha fantasia desagradável. E tremo de tesão quando os gemidos voltam. Tudo bem que parece que ela está sendo sufocada dentro de um copo de vidro, tamanho é o bloqueio que nos separa, mas enfim, não posso reclamar. A parede dá uma tremida repentina e eu dou um passo pra trás. "Opa, se essa merda desmoronar, já tô pronto", penso. Mas não desmorona, de jeito nenhum. E não, eu ainda não estava pronto.

Peguei o sabiá e comecei a mexer no pescoço dele. Passei o dedo suavemente pelo seu frágil pescocinho. Ele reage, cheio de não-me-toques.

Essa vizinha maravilhosa. Aqueles cabelos longos, levemente cacheados. Seus olhos verdes, um engano para os mais inocentes. Pobres meninos punheteiros. Ela é um engano demoníaco. Aquele nariz apertado caprichosamente pelo bom Criador. A boca não tinha um formato muito marcante, não era boca de boneca. Nada de mais. Apenas uma boca feita pra beijar, gemer, piar e gritar ordens do tipo "vá colocar a água pra ferver". Junte essa mistura de simplicidade e engano e coloque num rosto bem desenhado, com curvas ideais, bochechas firmes e na altura certa. Aquelas orelhinhas delicadas, os lóbulos parecendo tecos de pêssego pendurados. Bela, era isso que era, muito bela.

Era assim que eu imaginava minha vizinha. Não, eu nunca a vi. Mas sabe quando você sabe que sabe das coisas? Era o caso. Eu sabia que ela era assim. Igual um cara que imagina a cara de Deus ou de Jesus, por exemplo. Duvido que alguém comece a rezar sem visualizar uma cara. "Ó espectro divino, espírito sem face que tanto adoro", ora bolas, eu não sou idiota. Então, se você acredita em Deus, não me condene. Onde eu estava? Ah, falava da vizinha. Aquela deusa que pia. Aquele espírito com tetas. E que tetas. Eram grandes, volumosas. Exageradas. E aquele catarrento, aquela cigarra-humana estava lá, púbis na bunda, batismo imoral, gemidos e piados, lá estava ele, apertando aquelas montanhas da luxúria. Danados.

O sabiá se mexeu em minha mão, ameaçou piar, mas eu enforquei o bichinho. Tadinho.

E a água caindo. Meus ombros já deviam estar enrugados. Acho que até clareei um pouco, de tanta água que caía em minha pele. Mas estava lá, temendo e tremendo, enforcando o sabiá, com o ouvido na parede. Ploc, ploc, ploc. Os gemidos aumentaram, eu dei uma escorregada e choquei minha cabeça contra a parede. Toc, toc toc. Eles bateram na parede. Mal ele sabia que se a bendita parede caísse, eu estaria pronto para aquela bunda meia-boca da mulher dele. Malditos sejam, devem ter ficado nervosos, achando que eu havia protestado. Mas a verdade é que tudo deu certo para mim, o sem vergonha. Como contra-protesto ao meu não-protesto, eles aumentaram a intensidade. Ele gritava mais alto. Danados pirracentos. Pirraça gostosa. "Se a parede cair, meto a rola nela", pensei de novo. Ela deu uma risada alta, falou algo inteligível e voltou a gemer. O sabiá estava engasgado, roxo, os olhos esbugalhados, doido pra colocar o bico no trombone e eu impiedoso, sem vergonha, maníaco, enrugado, maltratando o sabiázinho. Tadinho. E eles começaram a pirraçar gostoso. Bateram mais forte. O boca de cigarra estava lá, voz grossa e abafada, devia estar vomitando insultos "sua cadela, sua puta, sua vadia" e ela devia estar enlouquecida "seu safado, cachorro maldito, me come". Danados demais. E o sabiá tadinho, doido pra urrar um impropério e nada. Estava roxo, o bichinho. Tadinho.

Mas eles uniram suas vozes, aquele casal danado e afinado. Chegaram no refrão de sua música imoral, chegaram no ápice, notas altas, vibrato, diafragma, "Alberto, cante com o diafragma, porra", lembrei do meu professor de canto gritando comigo. Mas lá estavam eles dois, que refrão! Chegaram lá. Chegamos lá. Eu era o vocal de apoio, o backing vocal, gemi baixinho, só pra servir de tapete para aquelas vozes. O sabiá gritou, urrou enlouquecido, como se contasse uma notícia ruim, uma fofoca daquelas. Parecia uma fofoqueira escandalosa. Que música. Que gritaria. Que pirraça. Eles bateram na parede, e lá estava eu, com o corpo franzino do sabiá em minhas mãos. Cansado, sofrido. Tadinho. E ouvi risadas gostosas no outro lado da parede. Essa parede desgraçada que não desmoronou. Risada embebida de relaxamento. O boca de cigarra catarrenta deu uma gargalhada, como se debochasse de mim, "esse vizinho otário aprendeu o que é uma boa foda", deve ter dito. Mal sabe ele que fizeram um ménage à trois comigo. Tecnicamente o sabiá estava no meio, então foi orgia mesmo.

Danados.

terça-feira, julho 29, 2014

O Profeta e a Turba

Um dia descobrirás
Que tudo não passa de ilusão
Mas certamente estranharás
A ausência da iluminação

O desapego me é amigo
A meditação um abrigo
Onde estará a acesa chama?
A libertação, o Nirvana?

Lamentarás ao olhar para trás
No caminho sem esplendor
Em compreensão repentina e sagaz

Notarás ter esquecido o amor

Não há luz nos becos da fuga
Passos de medo emitem mais sons
Tinham razão, o profeta e a turba
O amor é o maior dos dons

quarta-feira, julho 16, 2014

O Sentido das Engrenagens de um Mingau Frio

Será que a vida não passa de um acidente? Afinal, qual é o sentido de ser bom? Qual é o sentido em fazer o bem ao próximo? Será que existe algum sentido em ser mau? Existe sentido em algo? Ou estamos apenas flutuando, girando ao redor de uma estrela entre tantas trilhões que existem por aí?

Eu não sei qual é o sentido das coisas. Você encontra pessoas que mudam sua vida e elas vão embora. Você ouve Canção da América e começar a sentir o coração como se fosse uma uva passa. Enrugado, mínimo e escuro. E que canção. Você para pra pensar que em muitos casos, o tempo passou e as relações, muitas delas, esfriaram assim como é natural um prato de mingau esfriar. No começo comemos pela beirada, na ansiedade da fome, do desejo. E assim é com as amizades. No inícios forçamos tudo, raspamos de forma singela a beirada endurecida daquele simples prato. E assim é com a amizade. É coisa simples, como um prato de mingau de maizena. Quando menos esperamos, o mingau já pode ser devorado pois está morno. E o que sobra? Aqueles freios gelados, resquícios das colheradas que desferiam ruidosos riscos ao prato. E assim é com a amizade. Depois de tudo, você despeja o prato na pia e vai pra sala. Vai ouvir a Canção da América. Que canção. Você acabou de comer um mingau e nem percebeu que de repente comeu o sentido das coisas. Ou a explicação para alguma coisa. Ou um simples paralelo. Rostos passam por sua mente, movidos por uma soturna engrenagem. Quantos amigos não se foram por aí, caminhando por trajetos que nunca imaginei? Quantos amigos eu não imaginei como amigos para toda a vida. E hoje não estão aqui. Não estão nem sequer ali.

"Qualquer dia amigo eu volto a te encontrar".

Aí você se questiona, "mas por que diabos precisamos perder pessoas?", "por que não podemos amar a todos?", "por que a vida é assim, tão transitória?", "por que tudo muda?", "por que queremos que tudo fique do mesmo jeito?". Você se pergunta "por que existe sempre o outro lado da moeda?", "por que apenas não somos pra sempre?", "ou apenas mudamos toda hora?", "por que a estagnação opõe a mudança?" Aí você desliga a música e percebe que teria que questionar o porquê da vida se opor à morte. Ou seria que a morte se opõe à vida?

Não, você não quer mais pensar na vida. Nem eu. E nem queremos pensar no mingau das amizades. Nem na engrenagem que faz tudo girar ou na colher que pode travar tudo que gira. Se tudo travar, morreremos? Ou apenas viveremos sem entender mais nada? Peraê! A engrenagem parou? Qual era o sentido da engrenagem mesmo?

Nada faz sentido por aqui, né? Mas você sabe se algo realmente tem sentido?

sábado, julho 12, 2014

Afogado

Eu pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: o que eu fiz da minha vida? Quando eu era criança, costumava esperar dos céus. Esperava um sussurro de um espírito celeste. Um sussurro de Cristo. Eu esperava que um anjo aparecesse com um bandeja, austero e viril porém com olhar doce. Esperava que naquela reluzente bandeja a resposta estivesse lá, resplandecente, saída das mãos de Deus. Hoje vejo as silhuetas que a fumaça do cigarro formam nesse ar seco do Planalto Central e me distraio. Talvez seja melhor assumir minha característica mais escancarada: a distração. Talvez se eu não me concentrasse nos cantos, na pia, na casa dos homens onde verti minha vida, talvez seria melhor. Mas no fundo da minha alma eu grito por luz. Sim, eu quero luz. Quando tento me conformar com a dor, quando tento assumir minha limitação, quando simplesmente olho para a perna que não existe mais, arrancada pelas frustrações, caduco, saltito de desespero. No fundo de minha alma eu grito que quero mais. Sim, eu quero mais. Oh vida, o que fiz de você? Ou o que diabos você fez de mim? Acredito que aquela fatia mais doce da vida ficou na mesa de pessoas impiedosas. Que me amaram e me fizeram mal. Eu apenas fui levando, aprendendo aos trancos e barrancos. E não havia um farol sequer na costeira para me lançar sinais. Um sinal que fosse. Apenas olhos de homens, com olhos sombrios. Olhos escuros sem aquele brilho que tanto desejei. Sempre busquei ser guiado por pessoas e nunca prestei atenção que eu guiava. Mas cegos que guiam cegos causam tragédia: um abismo fica cheio deles. Mas acredito que não era cegueira, era distração.

Vida, o que fizemos?

E aí joguei tudo fora, alvoroçado. Desvariei. Perdi a noção da hora. Sonhei e ao sonhar rompi com o mundo. Naveguei em navios por toda a vida, pulando entre eles, alternando entre eles. E de repente os queimei em pleno oceano revoltoso e pulei contra as ondas. Ávido de mar. Amei o amor urgente, salguei minha boca com a maresia, sentindo as costas lanhadas pela tempestade. Nadei até fraquejar, clamei por um grande peixe para me engolir e me vomitar em terra firme. Mas eu sabia que não estava contrariando uma ordem divina. Lamentei. Engoli água, boiei com as algas, arrastei folhas, carreguei flores e me desmanchei. Não olhei nenhum momento para os céus, exceto o momento em que os trovões pararam. Foi ali que encontrei a paz. Mexi minhas pernas como o entrelace de penas numa cama de paixão. Mas não as sentia. Meu coração batia forte, pulsava, pulsava. A correnteza me guiava, mas todos os músculos estavam exaustos. Ergui meus olhos para avistar a terra, mas para minha surpresa, percebi que havia dado meus olhos para alguém. Um rosto sem olhos. Com que cara vou partir? Sem a visão que conforta todo o corpo, que nos aquece nas ilusões da vida, como hei de partir? Com a correnteza misteriosa que nos leva pra cá e pra lá aos caprichos dos ventos retumbantes, pra onde que é que ainda posso ir? E mesmo que chegasse a uma praia, sinto que não resta em mim força, não me resta energia para um piscar de olhos (se ainda os tivesse). Queria apenas amar o amor serenado, das noturnas praias. Aí pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: com que pernas eu devo seguir?

No levitar das águas, no borbulhar das águas salgadas, a noite é eterna. Senti minha mente acalmar, como se me entregasse aos braços dessa misteriosa eternidade. Mas eu não tinha as travessuras dela. Nadei como um peixe ferido por um anzol, recém fugido do pescador. Busquei refúgio nela, aquela que andava nua, ávida de mar e que amava como uma pagã, mas esqueci que o oceano é infinito. Se eu fosse uma gota de sangue, teria errado de veia e me perdido na bagunça do coração dela. Me perdi na ironia da vida ao sentir um destroço de um dos navios que queimei. Não tinha forças para me abraçar a ele. Ele cheirava a queimado.

Aí perguntei aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Não, não perguntei. O silêncio do mar durante a noite é o mesmo silêncio dos céus. E talvez a dor do inferno seja o silêncio.

Cortei o silêncio, mas não o feri com uma canção de glória ou uma santa melodia. Engasgado com água, catatônico, com brilho no rosto que há muito não se via, teimei em balbuciar aquele ingrato mantra das almas condenadas, das almas perdidas e afogadas.

Eu te amo.


terça-feira, setembro 10, 2013

Planos

Mais uma vez deixo mil planos para trás
Quando o 'não' é uma locomotiva que puxa vagões de razões obscuras
Quem poderá obstruir o trilho?

Mais uma vez deixo cem planos para trás
Quando seu abraço equivale às costas de um desconhecido que caminha atormentado à minha frente, em uma avenida qualquer
Quem poderá se virar para mim?

Mais uma vez deixo dez planos para trás
Quando seus olhos já não encontram os meus e já não se entrelaçam nossos dedos, como uma ciranda de crianças em risonho recreio
Quem poderá formar a roda e cantar algo que me faça rir?

Mais uma vez deixo um plano para trás
Quando o futuro se mascara de passado para esconder as lágrimas do presente que a vida lhe deu
Quem ousará fazer planos?

Mais uma vez deixo o nosso plano para trás
Plano Piloto rumo às Águas Claras e salgadas que insistem em brotar de meus olhos
Quem me faria voltar?

quinta-feira, maio 09, 2013

Uma Ode ao Cálcio

"Born to be wiiiiild", apenas esse trecho daquela música de rock se contorcia na mente de Ernesto. Finalmente aquela moto e Ernesto. Não, não se tratava de Ernesto Guevara e sua motoca riscando o mapa da América Latina. Até porque o Che jamais iria cantar uma música daquelas. Ele estava mais preocupado em ouvir flauta de índio boliviano. E a música não existia naquela época. Espero que esses argumentos tenham bastado. Ernesto nunca gostou de moto. "Máquinas da morte", era o que sempre dizia quando começavam a falar sobre o veículo de duas rodas. Ele não tinha o menor apreço pelos motoboys de São Paulo, mas quem o tinha? E verdade seja dita, Ernesto sempre foi adepto do transporte público. Ao viajar pelo interior do Paraná, recusou um serviço de moto-táxi, "perigoso demais para arriscar", pensava Ernesto enquanto ignorava o chamado do moço do moto-táxi. Mas aquela moto amarela, com traços de Harley-Davidson, ah aquela moto! Vibrava como milhões de abalos sísmicos num Japão qualquer aí. A liberdade de uma boa curva, a indecência de uma acelerada. "Onde você estava por todo esse tempo?", perguntava aos gritos, enquanto fazia curvas e costurava o trânsito embaraçado de São Paulo. Não havia pessoas na cidade, nas calçadas, nos pontos de ônibus ou nas portas de botecos, fumando seus cigarros na parte de fora do toldo. Não havia motoristas nos carros, ninguém lamentando o tempo perdido, ninguém ouvindo CBN querendo saber mais sobre o trânsito, aquele ecossistema de nervos e paciência budista. Havia dobermans. Deus, eles eram muitos. Não se intimidavam com o roncar da moto amarela. Não titubeavam em suas investidas, quando avançavam e rasgavam o ar com suas ferozes mordidas. "Quem eram aqueles malditos dobermans", pensou Ernesto enquanto tentava ressuscitar em sua mente um caminho, um atalho. Mas de repente, do que valia um GPS sequer, se Ernesto nem em São Paulo estava mais?

- Mas que maravilha! Agora não sei onde diabos me meti! - gritou Ernesto, enquanto sua voz ecoava outras frases.

Ernesto parou a moto, não tinha capacete para tirar. Ernesto era a aventura, era o esculacho, o peito estufado de encontro com a lei. Ernesto nem sequer usava meias. Era o esculacho. Desejou um pouco de bebida, água serviria, mas onde estava não havia o que desejar, a não ser a sobrevivência. Montou sua moto, castigou o pedal de partida com uma pela pisada e acelerou como nunca. O mundo estava ao contrário e o chão era nuvem. Era lindo. Mas postes, bancos de praça, semáforos, idosas e suas bengalas, calçadas rachadas, tudo caia sobre Ernesto. Mas não havia o que temer. Lar doce lar. "Por que tenho essa mania idiota de montar na minha moto em plena sala de casa? Devia parar com isso", pensou Ernesto, corrompido por lembranças estranhas, mas que eram suas. Ao menos pareciam ser. Dobermans.

- Mas o que é isso? Saiam desgraçados! - pisoteou novamente o pedal de partida.

A moto acelerava enlouquecidamente, o escapamento virado em direção aos dobermans. Mas eles não tinham medo. Valentes. Ernesto fechou a porta. "Já chega por hoje, preciso de um pequeno trago", dizendo isso, subiu  a escada da sala com sua moto, e lançou-a embaixo de sua cama. Esfregou uma palma da mão na outra e caminhou em passos pausados, aquela bota de couro, bico fino, detalhes indecifráveis de costura, sim, aquela bota testemunhara cada coisa. Toc, toc, toc. Ernesto não lembrava que seu chão era revestido por um piso de madeira. Deu de ombros para o fato, dobrou seu lábio inferior, como se sofresse de alguma mágoa instantânea e olhou para cima. O teto girou, noventa graus de giro. Virou parede.

- Isso não é possível - resmungou enquanto coçava seus olhos, tentando acreditar no que acontecera.

Ao tirar as mãos dos olhos, um bar. O verde vivo, fluorescente, neon por toda a parede, aquele maldito esqueleto velho sentada em um dos tamboretes, chorando pelo leite derramado, declamando um poema sobre os benefícios do cálcio. "Beba leite", ela vociferava. Aquela mandíbula mexendo enquanto palavras saiam sabe Deus de onde, aquilo dava nos nervos.

- Sente aqui, Ernesto, aqui ao meu lado, rapaz! Anda! - um velho baixo, parrudo como uma anta, careca da testa até o meio da cabeça, com smoking branco e gravata borboleta vermelha com pontos amarelos dava pequenos tapas no couro que revestia o tamborete ao seu lado.
- Quem é você? - Ernesto caminhava lentamente, avesso a qualquer hospitalidade estranha. Sobrancelha franzida, mãos nos bolsos. TOC, TOC, TOC.

O homem pegou um bloco de notas e começou a escrever com um lápis envelhecido, todo mordido nas pontas. Era nostálgico em seu modo de escrever, como se estivesse torcido por uma mão enorme. Mão de Deus. Era uma criança velha, de smoking, é claro. Entregou um papel para Ernesto, que estava sentado no tamborete, mirando o barman, acompanhando cada ato do pobre funcionário. "É bom que ele não erre a mão nesse drink", Ernesto pensava enquanto apanhava o papel da mão ressequida do idoso calvo.

Economizo as palavras. Por isso escrevo.
- Não faz sentido, velhote - ergueu seu copo, olhando para a cor alaranjada que o líquido assumira.

Uma dentadura jazia inerte, dentro do copo. "Piada de mal gosto desse babaca", refletiu enquanto cerrava os dentes no bico do copo. O líquido passava entre os dentes da frente e desapareciam na imensidão de sua garganta. "Realmente não faz sentido".

- Me explique melhor, seu velho mudo dos infernos! - Ernesto tinha os ânimos inflamados.

Alguma coisa tinha naquela bebida. Ah, tinha. O velhote, meio caquético, meio mancebo (a julgar pelo seu vigor ao rabiscar o papel), continuava ali, apoiado no balcão, inclinado sobre o papel. Uma fila de formigas passava a centímetros de sua mão, que dançava sobre a folha grosseira e amarelada. Ele suava, e havia algo de urgente em seu olhar, como se tivesse uma verdade para contar. Como se fosse a última testemunha viva de um crime prescrito. Arrancou aquela folha do bloco e entregou outra vez para Ernesto.

Não se engane em relação a mim, garoto. Perdi minha língua para não enlouquecer. Não era sequer um instrumento de tropeço para mim. Era causa de insanidade. Assim Deus quis. Assim o é. 
Ernesto leu a mensagem, raciocinou lentamente. Coçou a sobrancelha direita que estava levemente desequilibrada em relação a da esquerda. Amassou o papel e jogou para trás, ignorando o destino que iria tomar. O papel não chegou a tocar no chão, arqueou sua trajetória evitando o impacto com o duro solo. Sem explicações, sem razões para ser, o subiu suavemente, como uma andorinha domina os braços dos ventos. Ernesto percebeu que o papel estava lá de novo, ao lado do copo já drenado. "Haja a santa paciência, pra tolerar essas brincadeiras". Acenou para o barman e pediu um uísque, à moda antiga.

- Preste atenção, meu senhor. Não vou tolerar mágicas, truques. Odeio essas coisas e eu tô falando sério - ele apontava o dedo para o velho como se fosse uma testemunha indicando um suspeito como autor de um crime.

O velho sorriu serenamente, sem exibir os dentes. Sua boca era acidentada, lábios escurecidos e sulcados. Mas a feição era de um bom senhor, um velhinho daqueles que simpatizamos nas ruas. Fez um sinal com a palma da mão, pedindo para que Ernesto esperasse pelo próximo papel. Ernesto bufou com linhas desprezíveis, olhou para cima e apoiou seu cotovelo no balcão e em seguida, apoiando sua bochecha na palma da mão. Sua cara ficou engraçada.

- Ei chefe! E o meu uísque? Posso saber onde está? - perguntou desinteressado, com o olhar passeando lentamente pelo vazio.
- Eu já te disse que quem tem chefe é índio! - Ernesto ouviu a voz flutuando atrás de sua nuca.

Observou o velho que ainda estava lá, escrevendo, como se fosse uma criança entretida debruçada em seu livro de pintura. Observou o barman, aquele paspalho que observava a tudo. Notou algo impressionante: o uísque parara no ar. Não tinha ainda atingido o fundo do copo e o barman estava lá, encostado na porta dos fundos, parado, como se fosse uma cena comum. O esqueleto repetia sua ode ao cálcio. "Maldito esqueleto, odeio essa mandíbula trêmula. Não é possível que eu tenha uma mandíbula como essa", Ernesto era puro desprezo em suas considerações. Lembrou da voz por trás de sua nuca e virou. Era ele, Artur. Mas antes de sentir qualquer alívio por vislumbrar um rosto conhecido, sentiu aquela massa de ossos e pele, quatro dedos pontudos, fechados, massacrando a mandíbula de Ernesto. Sentiu como se um anjo maligno trancasse seu rosto com um cadeado de fogo. Ele não conseguia falar mais. A mandíbula estava travada, a dor se remexia em seus nervos, seus sangue borbulhava em intensidade, Ernesto via cores, explosões de cores, tudo girava.

- Espero que tenha aprendido a lição, meu nobre amigo - Artur estendia a mão para o amigo golpeado se recompor.

Ernesto pulou de imediato e procurou pelo velho. Havia apenas um papel escrito e o lápis desgastado, imóvel ao lado de um copo. Parecia rum.

Quando um homem ouve ecoar as palavras que diz, como se fosse um ciclo infinito, tende-se a medidas drásticas. Economize palavras ou arranque-as de seu solo nutridor. Eu sou homem. Eu arranquei. 
Ernesto chorava ao terminar a leitura. Como se todas as suas dores fossem condensadas em uma pasta grosseira, áspera e agreste. Essa massa substituía seus músculos, nervos de angústia se materializavam e tiniam causando tremores assombrosos. E com todo esse processo de ebulição apenas lágrima, aquele líquido límpido, salgado e inofensivo, saía como produto daquela série de sensações. "Lágrimas não são assim tão inofensivas", Ernesto tocava sua mandíbula e sofria. Olhou-se no espelho e chorou mais um pouco. Não havia mandíbula. Não havia língua. Havia uma mancha, borrando seu rosto, a cor era indescritível. Essa cor não existia. A mancha se estendia do buço até o queixo.

- O cálcio é um milagre mineral, benéfico como é a flor, dentes e ossos... - o esqueleto teve seu poema interrompido por um copo que cortou o ar, bem rente à sua clavícula.

Ernesto procurava por Artur que havia desaparecido. Sentou no tamborete onde o velho sentara antes e alcançou o último bilhete. O esqueleto deu uma risada oportuna.

- Ei você! Da boca borrada! - apontava pra Ernesto - O que acontece com você?

Ernesto pegou o papel com a mensagem do velho e o ergueu com a mão direita. Com a mão esquerda sinalizou que iria escrever algo. Olhou para a mensagem, leu as duas primeiras palavras e ficou exaltado. Não havia mais uma folha de papel, nem guardanapos naquele bar decadente. Pegou o lápis com a mão esquerda e virou o bilhete. Escreveria no verso.

Ninguém pode sobrepor seus problemas ao dos outros. Não há escapatória para aquilo que você não entende e ignora. Não há fuga. Nem no verso de um papel.

Lágrimas lhe caíam dos olhos, cada vez mais espessas. Seus canais lacrimais estavam no limite. Procurou por todos os lados mas não achou sua cama. Queria a moto novamente. O esqueleto apontou para o norte e Ernesto correu como nunca. Observou uma figura escura a cinquenta metros dele. Era a cama. Se prostrou e lá embaixo, não percebeu nenhum resquício de sua moto. Mas três dobermans permaneciam sentados por lá, patas cruzadas e sete cartas em cada mão. "Isso parece o apocalipse!", Ernesto tentou voltar para o bar, mas um doberman arrancou seu pé direito, com uma mordida só. Com o pé de Ernesto em sua boca, despejou as sete cartas no chão. Os outros dois dobermans brigaram pelo pé, e os latidos e ganidos eram ensurdecedores. Sem o pé direito, Ernesto escapou de sua cama e correu até o bar. Ele perdia muito sangue. Sentou no tamborete, sem o pé direito, e viu o uísque enfim cair no fundo do copo. Esqueceu a dor e recebeu com prazer o copo. Tentou beber mas esquecera que não tinha mais boca. Apenas um borrão de cor não existente. Olhou para o que restou de seu pé e percebeu o sangue jorrar. Olhou para o pé esquerdo que mexia normalmente, obedecendo as ordens do seu cérebro. "Ao menos sou canhoto", pensou Ernesto pensando estar a sorrir, mas sabendo que nem dentes tinha mais.

- Cálcio, ah! o cálcio! Faz bem para os dentes, o cálcio! - o esqueleto era a alegria em osso e osso.

domingo, maio 05, 2013

Barriga de Chope

- Nelson, nós conversamos em uma reunião com a gravadora.
- Sim, acredito que as pessoas conversem em reuniões, a não ser que exista a possibilidade de vocês tocarem bongô fumando merda, olhando pro teto - acendi um cigarro enquanto balbuciava meu sarcasmo.
- Olha Nelson, você é um bom baixista, ninguém tem dúvida disso.
- E também componho metade das músicas - cortei novamente a fala do empresário da banda.
- Sim, você é um excelente letrista. Também não temos dúvida disso. Mas é que...
- 'Nós', 'temos', é muita terceira pessoal nesse papo. Quem são vocês? Em nome de quem você está falando, pelo amor de Deus? - soprei fumaça intencionalmente na direção do rosto dele.
- Esse 'nós' significa os caras da gravadora, o Martinho e eu - o seu jeito soturno de falar começou a me deixar agitado.
- Pois bem, desembucha logo. E pare de falar olhando pra baixo, parece criança arteira depois de fazer merda. Aliás, que merda você fez?

A tarde era quente, mais um daqueles dias típicos em São Paulo. Você sai de casaco pela manhã, morrendo com um frio moscovita, ao meio-dia tudo o que você quer é que a cidade se torne uma colônia naturista e que todos andem nus balançando suas bolas e seus seios. Eu odiava aquela salinha do estúdio. Era pra ser apenas mais um ensaio da banda. Os Fumos Enrolados. Eu odiava o nome da banda, mas fui voto vencido. Eu tinha uma lista de sugestões, todas vetadas. Acredito que o nome 'Os Tolos da Colina' era mais legal, tinha um fundo beatlemaníaco, alimentaria a curiosidade do público. Mas fui voto vencido. E o Paulinho Kabul era um bom moço. Um empresário esforçado, bebia como se o seu corpo fosse uma grande esponja. Sempre tinha boas ideias e sua rede de contatos, bem, era um tanto medíocre. Mas ele havia conseguido aquele contrato com a gravadora e a sua moral conosco foi catapultada. Ele pegou um cigarrinho de maconha, girou o baseado por alguns minutos, com olhar fixo num cartaz pregado na parede daquela maldita salinha. O cartaz era de um show do Deep Purple em Montreaux, no ano de 1969. Tenho certeza absoluta que aquele ano havia sido melhor que essa merda de 2006.

- E então, Paulinho? - arregalei meus olhos, fuzilando-o com raios de pressão. Eu mais parecia com um homem morrendo afogado, de tanta apreensão.
- O pessoal da gravadora acha que você não ajuda na imagem da banda.
- Pffff - fiz um ruído tremendo meus lábios, externando desprezo - O que uma coisa tem a ver com a outra?
- Pra eles faz sentido, apenas isso. Eu argumentei, cara. Juro pela minha mãe - ergueu seu braço, abrindo a mão, com a palma virada para mim.
- Quer dizer que somos apenas imagem? Somos apenas ícones legais? E em qual momento vocês falaram sobre música? - minha cara de afogado agora era de afogado em meio a uma cacetada de tubarões.
- Não falaram sobre música.
- Agora já não existe 'nós', existe apenas 'eles'.
- Nelson, é assim que o mercado funciona. Não tem como nadar contra a maré.

Eu continuava atacando o cigarro com dedicação, apertando o filtro macio entre meus dedos. A minha vontade era de apagar aquele cigarro na testa dele.

- Veja bem, aquilo que era uma era de ouro - apontei para o quadro do Deep Purple - Não tinha isso de 'imagem', de 'comércio'. Caralho, os caras eram maltrapilhos, fediam e não estavam se importando.
- Eu sei disso, mas os tempos mudaram, Nelson! Você é um idealista, não dá pra viver assim! Hoje temos uma série de novos conceitos, porra...
- Maldita cultura de massa. Aliás, quer dizer que vocês vão virar uma bandinha como qualquer uma dessas? Que se vende? Você sabe que o Martinho vai ter que fazer uma plástica naquela cara horrível - eu havia me acomodado na pequena poltrona dura, de tecido desgastado e manchado.
- Nelson - os olhos de Paulinho estavam amansados, o efeito da maconha havia acariciado sua mente - se você quiser uma máquina do tempo, não sou eu que vou te dar - começou a rir suavemente, com feição de um chinês que trabalha duro em uma mina de carvão.
- Então além de me dispensar, você ainda me destrata? Só um instante.

Estendi meu braço na direção de Paulinho, pedindo para ele esperar ali.

- Ei Nelson! - deu uma risada - Onde vai? Pegar uma arma?
- Precisaria de uma bomba pra fazer o que gostaria - respondi desanimado enquanto ganhava o corredor.

Fechei a porta da salinha maldita e fui até outra sala, onde deixávamos nossas coisas para ensaiar. Aquela corja que antes era minha banda, já havia se mandado. Covardes. Abri um pequeno armário e percebi que minha garrafa de Jack Daniels estava lá. Eu não bebia esse uísque por ser modinha entre roqueiros. Era o melhor mesmo, eu gostava muito. Eu ainda tinha dois terços da garrafa cheia, isso daria para me fazer raciocinar. Dei um pulo até a pequena copa do estúdio, que estava imunda e abri a geladeira branca, descascada e enferrujada em sua base. Havia gelo também. Mas como nem tudo era classe, o único copo disponível era um de requeijão. Despejei quatro cubos de gelo e voltei para a salinha, com um copo em uma mão e a garrafa na outra. O carpete empoeirado e encardido do estúdio me fez pensar no covil em que ensaiamos. Nem é tudo isso. Vira e mexe encontrávamos pequenas bandas idiotas perambulando pelos corredores daquele estúdio chinfrim, gravando suas demos, com dinheiro contado, todos se achando os roqueiros consagrados. Confesso que eu não estava nem aí para toda a aura esplendorosa de sucesso que circunda as ambições de cada moleque que se propõe a fazer um som. Eu estava lá para fazer algo diferente. Eu tinha base musical, conhecimento da história da música, eu sabia o caminho das pedras para criar algo novo, mas no final das contas, eu era um péssimo músico. Aquele papo do Paulinho, de eu ser um bom baixista, foi bajulação. Como se fosse uma enfermeira passando algodão molhado no meu braço antes de enfiar uma agulha enorme em minhas veias. Deus do céu.

- Onde estávamos? - perguntei adentrando a sala e fechando a porta.
- Hã? - Paulinho estava pra lá de Bagdá. Ou pra lá de Kingston. Somente os esclarecidos entenderão.
- Olha aqui, Paulinho, largue essa erva danada e me dê sua atenção - eu era imperativo, mas com a serenidade de uma vaca num pasto.
- Diga, meu querido Nelson. Diga o que quiser, meu querido Nelson.
- Corta esse papo de 'querido', cara. Eu vou beber, e já que você quer se entorpecer nessa merda, então seremos dois entorpecidos discutindo.
- Boto fé.
- Bota fé... sei - comecei a trabalhar no uísque.
- Pois bem, meu caro Paulinho...
- Corta essa de 'meu caro' - Paulinho começou a rir de forma ligeira, aquilo afetou minha retórica.
- Ei, Paulinho, seu porra! Ouça!

Paulinho enfiou aqueles dentes amarelos pra dentro da boca novamente e finalmente ficou quieto.

- Cara, vocês estão nessa de se vender mesmo? O que tem de mais em mim? Eu nem sou drogado, porra - meu tom era lamurioso.
- A gravadora vai colocar a banda pra tocar em uma série de programas na MTV. E sabe, a banda tem mania de tirar camisa em êxtase, mostrando tatuagem, pulando igual macacos, aquela merda lá, todo mundo drogado. É a visão do inferno, tá certo, mas vende. As menininhas estão loucas por vocês. Aliás, menos você.
- O que tem eu, caceta? Me explique es-pe-ci-fi-ca-men-te - pausei a última palavra para ver se aquela mente fumada entenderia.
- Você tem barriga de chope. Você não tem tatuagem. Você é o intelectual da banda, só bebe e fuma, não curte uma droguinha sequer. Você tem perfil para tocar com o Los Hermanos ou algo parecido.
- Ei, eu fumo uma maconhazinha de leve.
- Então... É de leve. A gravadora quer algo bonito e subversivo. Quer todo mundo em forma. E o seu cabelo não ajuda.
- Meu cabelo? Ele é o mais legal dessa banda! O Pépe tem caspa pra cacete! A cabeça dele parece um telhado de casa americana no natal, parece neve! Fica pulando no palco com aquelas caspas nos ombros, parece que saiu de um pacote de biscoito de polvilho! E olhe o cabelo do Martinho, parece uma palha de aço enferrujada. Se você der uma tapa na cabeça dele, o cabelo se desfaz!
- O Martinho é o símbolo da banda, é o que a gravadora quer.
- Ah sim... olhei para Paulinho com desdém - A gravadora não vai trocar o nome dele? Aquilo é nome de sambista.
- É, é uma boa sugestão - seu olhar era vago, como se visse um quadro, em algum museu legal.
- Tá vendo? Você também se vendeu. Puta que pariu - finalizei o primeiro copo. A tarde seria longa.
- Você parece um comunista falando - esboçou um sorrisinho naquele rosto salpicado de marcas de espinhas.
- Ei, quem satiriza os comunistas sou eu! - ergui minhas costas apontando para o rosto dele.
- Abaixe o dedo, Nelson... você é muito atrevido.
- Quer dizer que então você vai se prostituir? Ótimo. Vão fazer música para menininhas enlouquecidas? O que querem? Boquetinho no camarim? Meter o dedo naquelas ninfetinhas? Porra, eu achava que você não gostava do cheiro de fraldas. Amigão, foda-se essa banda, vou continuar fumando, bebendo e comendo bocetas adultas.
- Os Beatles faziam música pra meninada, Nelson. Isso não é de hoje. Estamos falando do começo dos anos sessenta - o pobre diabo me lançou um olhar desafiador, seguido de um ar de soberba, como se tivesse o argumento definitivo.
- Ohhhh - olhei para o alto como se vislumbrasse uma revelação divina - Então os Fumos Enrolados serão os novos Beatles? Daqui quatro anos vocês lançarão algo parecido com o 'Revolver'? E o 'Sergeant Pepper's'? Daqui cinco anos? Uau! - eu sou extremamente exagerado com minhas ironias.
- Não... vamos apenas curtir e ver no que vai dar.
- Meu Santo Cristo! E é assim que você vai levar essa banda? Deixa a vida me levar? - terminei o segundo copo, com leve torpor de sentidos.
- Deixe de ser antiquado, Nelson. É assim que o mundo funciona! Pare de ser o músico romântico! - de supetão, Paulinho se ergueu da cadeira.
- Baixa a bola, camarada.
- Camarada? Tá vendo? Parece comunista. Vá sumir pelo interior, vá cantar folk numa comunidade hippie. Haja paciência.
- Meu Deus do céu! Pra mim já basta!

Ele podia me ofender de diversas formas. Mas ali ele passou da conta. Me ergui da poltrona, deixando o copo com os gelos quase vencidos pelo calor no chão acarpetado e ensaiei um gingado de boxe. Paulinho se assustou com minha apelação para a violência.

- Vamos! - ergui meu rosto, extremamente austero - Erga-se! Ninguém me chama de comunista, ninguém me chama de hippie! Nossa amizade chegou num ponto crítico.
- Calma Nelson, calma, cara - ele recuou as costas na cadeira e levantou a guarda de forma penosa.
- Calma uma ova!

Fui para cima daquela puta musical. Mas eu estava levemente bêbado, sentia a suavidade de uma nuvem nas pernas, a leveza de uma bailarina em seu número mais glorioso. Caí em cima dele e golpeei a maçã de seu rosto sofrido e esburacado. E ele, como um bom covarde, esperneou e relinchou, como um pangaré em perigo.

- Cale a boca e lute como homem! Sua puta maldita! - rosnei, babando em seu rosto.
- Você está acabado, Nelson! Saia de cima de mim, idiota! Caraaaaalhoooo! - ele tentava chamar a atenção de alguém com seu escândalo.
- Você me paga por tudo isso, desgraçado! Lute como um homem! - minha determinação era tão grande ao montar em cima da carcaça daquele desgraçado, que eu poderia facilmente ser campeão de rodeio, nenhum touro seria suficientemente arisco pra me derrubar.
- Me deixe levantar! Você quer brigar como homem? Me deixe levantar! Eu vou te dar uma lição daquelas, pode apostar!

Meu orgulho foi ferido e me ergui daquele corpo raquítico e me postei, gingando com brilhantismo. As pernas se alternavam, meus braços estavam leves e meus ombros relaxados. Eu era uma espécie de Mohammed Ali brasileiro e com barriga de chope. Paulinho ergueu-se lentamente, desajeitado, assustado. Ficou parado diante de mim, olhando para a porta. Seu olhar fica entre mim e a porta. Ele falou algo desafiador.

- Seu merda, me pegou desprevenido. Vamos ver do que você é capaz!

Ao dizer isso, deu um pinote e fugiu pela porta. Ouvi os passos pesados de um cagão, atacando o carpete imundo do estúdio. Ele gritava, me acusando de loucura. Ouvi a porta de entrada do estúdio fechar. Me recompus e servi mais um pouco de uísque, sem gelo, sem frescura. Naquela situação, eu poderia beber água sanitária e ainda pediria mais. Corri até a janela da salinha maldita, me desviando da pequena mesa redonda e barata e consegui visualizar a rua. Paulinho corria feito louco em direção à padaria, enquanto eu bebia meu uísque, processando ainda a derrota, o fim de minha carreira musical. Fazia parte. Levantei minha camiseta e olhei para minha barriga; ela sempre me acompanhou, nunca foi empecilho para conquistar uma moça ou para jogar um bom futebol. E agora ela estava ali comigo, me olhando, redondinha, macia, peluda, como se me consolasse pelo fracasso. Bebi o último gole do uísque que já se tornara forte à medida que meu sangue ia esfriando. Acariciei lentamente minha barriga, com a complacência de uma grávida, como se eu estivesse esperando um pobre neném.

- Foda-se tudo isso. Preciso de uma coxinha bem crocante.

terça-feira, abril 30, 2013

Os Apuros de um Futuro Papai

Era mais um dia seco em Brasília. Seco mesmo, como se giletes transpassassem minhas narinas. Você sente o corte a cada inspiração e um leve alívio a cada expiração. O ato básico da vida é um sacrifício quando se vive sob quinze por cento de umidade relativa do ar. Mas eu já estava me acostumando e até então, meu nariz nunca sangrara.

O metro às seis da tarde exibia sua coleção abarrotada de pessoas, todas elas com presença cativa naquela plataforma curta e cada vez menos capaz de comportar tanta gente. É como se tirassem o fogo do inferno, mas mantivessem o calor. O desespero, a falta de ar, a negligência com o próximo, as cotoveladas, os rostos desfigurados, como se manequins assumissem vida, mas continuassem sem coração e sem exageros, a distância de Deus e do seu Paraíso, transformavam aquela cena em uma figura que desesperaria Dante e sua descrição bonitinha de inferno. Quando o trem de modelo defasado (sim, existem alguns modelos modernos com narradora robô) chegava lentamente, prenunciando o ritmo sereno de sua jornada até o fim da linha, as pessoas se apinhavam ao redor das portas, o empurra-empurra, pessoas se atirando, saltitando, girando e trombando nas barras de alumínio do trem, promoviam um balé assombroso do cotidiano. Eram bailarinos sofridos, sem flexibilidade, com apenas um passo ensaiado, o passo do desdém, da busca do alívio, da busca por um assento. São raros os momentos em que os instintos se sobrepõem a qualquer ato de humanidade, seja a cortesia, ou seja o pensar. Pensar na vida, pensar nos planos, no amanhã, no ontem. Naquele momento, não existia o homo sapiens. Era como se um bando de macacos estivesse a se refugiar, sob o abrigo de uma caverna, de um sol flamejante, torturante. Ali eles apenas existiam. E existir era apavorante. Eu estava aquém daquela feira de odores e fluídos, aquele contrabando de olhares. Eu sempre deixava aquela loucura cessar e entrava triunfante, ficando em pé mesmo. Prefiro minha paz, nem que o preço seja permanecer por meia-hora sobre meus pés chatos. Sempre tinha uma leitura interessante ou simplesmente ficava bolinando meu celular. Mas nem sempre eu conseguia repousar em quietude perspicaz; pessoas que esperavam pelo trem que levava a outro destino (em Brasília são dois os destinos que partem da estação Central: Samambaia e Ceilândia - ambos sofridos) montavam um batalhão de choque, declarando aquele território como seu, impedindo a entrada de pessoas que ainda não entraram no trem, evitando aquele alvoroço. Eles simplesmente teimavam firmes como se fossem numerosas espadas do rei Arthur, postada em frente às portas do trem. Eu pedia licença, dava doces cutucões nos ombros, mas eles fingiam não ouvir, não sentir. Eram múmias em sarcófagos abertos, empoeirados pela ignorância. Forcei minha entrada como se quisesse arrombar uma porta, e aquilo geralmente despertava os ânimos. Passei entre uma velha descabelada e suada e um homem nanico, com a cabeça mais larga que o comum, exibindo pouco revestimento capilar em sua extensão. Parecia uma caricatura desenhada por um cego reumático. Enfim entrei e me voltei para a porta, encarando aquelas múmias sem expressão, envoltas por lençóis de indiferença. Deus como estou poético.

Naquele dia, eu ouvia Perry Como, um cantor tão defasado como os trens velhos do metrô de minha amada capital. Eu flutuava, abençoado pela interpretação de 'Come Rain or Come Shine'. "Oh, Deus, essa música eu dediquei à Elisa", pensei com a testa enrugada. Lembrava do meu olhar entrelaçado ao dela. A canção era entoada pela Billie Holiday. Me arrepio só de lembrar. O nariz dela, levemente enrugado, cúmplice daquela boca discreta, que insistia em me provocar com aquele sorrisinho atrevido. "Maldita seja Elisa, queria você aqui comigo, miserável do inferno". Chacoalhei minha cabeça discretamente, para me desprender daquela imagem do passado. Ainda doía muito. Fiquei a observar o sossego e a harmonia que enfim subjugou aquela massa de reprimidas figuras. Como em qualquer concentração de pessoas, a paz era espetada por tagarelices das mais diversas. Aquilo em muitos casos me desconcentrava. Mas um homem, comprimido em seus trinta anos, barba falhada, mas farta, com roupas mal ajambradas gritava como um vendedor da rua vinte e cinco de março.

- Que Deus abençoe a viagem de vocês! Que Deus nunca deixe acontecer com vocês o que aconteceu comigo! - caminhava com dificuldade entre os cidadãos que, como era esperado, permaneciam indiferentes ao clamor do pobre diabo.

Percebi uma inquietação fora do normal em seu rosto. A expressão de desespero se promovia sobre os vincos de sua face morena e bem avermelhada, com algumas pequenas cicatrizes. Rosto claramente castigado pelo sol e pela desconfiança. Um cara novo como aquele não devia ter tantas rugas. Pausei a música e deixei um dos fones de ouvido cair.

- Eu fui um idiota! Eu sou um idiota! Não me julguem, pelo amor de Deus. Que Jesus tenha misericórdia de mim - apontou para o céu, sem erguer muito o braço - Mas eu não quero pagar por isso! Eu preciso de ajuda! Ah, Senhor, eu preciso de ajuda!
- Credo, o que você fez, véi? - era uma adolescente gotejada por piercings em todos os cantos aparentes, se destacando em meio a outros moleques com ar de deboche.
- Eu vou ser julgado, eu sei que vou. Por favor, tentem me entender! - o homem urrava, deixando aquelas múmias atentas.
- Desembucha logo aí, porra! - um homem musculoso ergueu sua voz, nervos evidentes no pescoço, com a mão aberta e estendida para o louco, como se fosse estapeá-lo.

As pessoas estavam apreensivas, o silêncio era unânime. Apenas os ruídos do trem castigando os trilhos cortava aquela interrupção brusca do barulho. As pessoas arregalavam seus olhos, como se esperassem pelo desenrolar do último episódio de uma novela.

- EU ENGRAVIDEI MINHA NAMORADA! - dizendo isso, despencou sua postura já vacilante e quase se esparramou pelo chão do trem.
- Puta que me pariu, cara! Vai se foder! - um homem de óculos e camisa amassada quebrou o silêncio, abrindo espaço para mais críticas.
- Meu Deus! Pensei que ele tinha matado alguém!
- Eu também! Tipo, a mãe dele! Sei lá! Algo parecido

Já não se tratava de burburinho. O trem parecia uma convenção de vendedores. Um misto de alívio e chacotas passeava pela atmosfera em forma de comentários rápidos e altos. E como já era previsto, as pessoas que conversavam antes do episódio, voltaram com seus assuntos, dando risadas. Quem não estava conversando, começou a conversar. E eu avesso a tudo isso, meneei negativamente minha cabeça e fitei o louco e futuro papai. O trem freou e o condutor anunciou que chegávamos na estação 102 Sul. Mais pessoas com juízo adormecido entravam como zumbis, lentamente, lançando olhares uns para os outros, como formigas que se chocam no caminho do formigueiro.

- EI! EU NÃO ACABEI! - o homem sofrido voltou berrar.
- Ei campeão, já deu, hein? Chega! - era o homem musculoso novamente, com aqueles nervos saltitantes no pescoço, aquilo me provocava repulsa.
- Opa, opa! - gritei e me dirigi ao grandalhão, enquanto enrolava meus fones de ouvido e os colocava no bolso da calça.

O homem tomou um susto, como se fosse um milagre alguém enfrentá-lo. Ele era mais baixo que eu, mas o braço dele tinha o diâmetro da minha coxa. Eu tenho boas pernas. Ele soltou sua mochilinha de rato de academia, estufou o peito e gesticulou muito.

- Opa O QUÊ, meu irmão? Vai querer criar problemas? - O Golias vociferava em minha direção. Minhas pernas tremiam, mas meus olhos se mantinham alinhados aos dele.
- Não quero criar problemas, mas você não tem o direito de ameaçar um cara tão desesperado - minha calma estava inabalável, como se fosse um grosso véu escuro revestindo uma porção trêmula de gelatina.
- Você virou juiz pra dizer meus direitos?! - mais gritos. A voz dele não era lá essas coisas, não era grossa.
- Amigão, deixe o cara esmolar. Ele já está cheio de problemas... - fui interrompido.
- Amigão um caralho!
- Ué, você me chamou de seu irmão no começo dessa discussão - eu era um monge urbano, embasado na pacífica retórica.
- CALE A BOCA! - ele apontou pra mim e em seguida forçou passagem entre as múmias entorpecidas pelo espanto que a situação provocava.

Eu estava um pouco longe da muralha humana, e quando ele se deslocou, ginguei um pouco, peguei minha mala e me escondi atrás de algumas figuras empalhadas que serviam apenas como obstáculos, não como seres humanos animados. Isso era uma vantagem.

- Ei, tire sua mão de mim, filho de uma quenga! - um homem com sotaque bem forte de Pernambuco se desvencilhou de mim.
- EI! Pare com isso, seu veado! - o homem louco e bagunçado, futuro papai, se lançou contra o incrível Hulk do cerrado.
- Tire suas mãos de mim, seu corno desgraçado! - o grandalhão latia, enquanto tombava no chão.

As pessoas se apinhavam ao redor dos assentos, deixando uma espécie de ringue para que lutássemos. Eu odiei a ideia. Quando aquela torre animada tombou, aproveitei para me fazer de apaziguador. Não seria legal chutar aquele morro de músculos quando ainda estava caído. Não eu, Nelson, espancado duas vezes, sendo uma dessas vezes, num trem. Lancei-me entre os dois brigões, como um juiz de vale-tudo, finalizando o embate. Ilusão minha. Senti uma mão calejada, como se fosse um tijolo lascado, se apoderar de meu fino braço. Dei um grito agudo e comecei a me debater. Como um sabonete molhado, me livrei da opressão do homem bombado. E ele estava irritado. O louco, futuro papai, levantou-se em um só movimento e se afastou. "Filho da puta, você me paga, maldito", praguejei contra o recuo do meu aliado. O monstro sagrados dos trilhos levantou-se usando as duas mãos e bufou. Sua pele estava roxa, como se tivessem trocado a pele dele por um tecido grosseiro e escuro. "Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito", pensei enquanto lembrava que sempre sonhava em dizer isso diante da face da Dona Morte. Não era bem aquela senhora de capuz e foice que se apresentava diante de mim. Mas era tão assustador quanto. Quando a montanha de ódio preparava sua investida fatal, o alucinado que seria papai gritou:

- PUTA QUE PARIU! ALGUÉM ME OUÇA!

As pessoas pararam e o touro com fisionomia humana desviou seu olhar para o louco. Respirei ofegante, por alguns segundos. Enquanto calculava minha fuga, lamentava a coincidência de estar em um dos trechos mais longos entre estações. Da estação 102 Sul, o trem só pararia na estação 108 Sul, negligenciando a 104 e 106. Culpa do governo. Maldito PT.

- Eu não quero causar essa zona toda, pelo amor de Deus! Só quero pedir dinheiro para pagar o aborto da minha namorada! - havia convicção nos olhos reféns dos sulcos que dominavam a pele de seu rosto. Sim, havia convicção.
- Pra pagar o que? - perguntei em voz alta e chocada, meio impressionado, meio procurando desviar a atenção do brutamonte para a nova situação que se desenhava.
- Para minha namorada abortar! Quem quer mais um marginal nas ruas? Eu não tenho condição pra criar esse moleque! - se explicava como se fosse um advogado em meio a um tribunal.
-  Você precisa de Jesus! Tome vergonha na cara, seu safado! - uma velha reuniu forças e abandonou seu assento preferencial, dirigindo-se ao louco, que agora, não sei se será papai.
- Minha senhora, com todo o respeito... - o homem sentia a hostilidade da humanidade. Eu sabia como era isso.
- PESTES COMO VOCÊ DEVERIAM MORRER! - o titã do planalto central latiu. A atenção dele já era do cara doido. As batidas do meu coração estavam mais calmas. "Deus, não é dessa vez que entrego meu espírito", pensei dando risada do conteúdo patético da minha cabeça.

E mais uma vez - que me perdoe o leitor pelo tema repetitivo das minhas narrativas - o pau comeu.

O louco - que levando em consideração aquela situação - realmente não seria mais papai, apenas se jogou no chão, em posição fetal, protegendo sua cabeça e erguendo de forma penosa o outro braço. Pessoas jorravam contra o pobre indigente. E o pior: ele não era indigente. Era um louco apenas. E as pessoas não se davam conta disso. De estado vegetativo, evoluíram ou regrediram para o êxtase violento. "Essas coisas me preocupam, o mundo está perdido", pensei enquanto ouvia o anúncio do condutor do trem, de parada iminente na próxima estação.

O trem parou, mas antes de escapar daquele vagão da morte, me meti no meio do emaranhado de bárbaros e, pronto para saltar até a plataforma em um só movimento, esperei o apito que anunciava o fechamento das portas. Quando as luzes que ficavam acima das portas piscaram, desferi um murro na nuca do grandalhão, que desmoronou em cima de alguns idiotas que gritavam com o louco. Saltei rapidamente, sentindo o golpe de uma das portas no meu pé esquerdo. O gorila branco estava esboçando alguma reação enquanto eu via o trem deixar a estação lentamente. Acenei para aquela tribo de loucos e ganhei os degraus da escada. Naquela noite, voltaria para casa de táxi.




quarta-feira, abril 17, 2013

A Contradição Encarnada em Passos Vacilantes

Eu caminhava lentamente, seguindo meu novo ritmo de vida. Depois eu explico. Olhava hipnoticamente para meus sapatos opacos em movimento. Havia um pequeno risco marrom, era barro, com certeza. Eu ainda não havia engraxado os benditos sapatos e não foi por falta de ofertas. Nunca em minha vida alguém chegou pra mim e se ofereceu pra engraxar meus sapatos, até porque eu sempre usei tênis, inclusive em trabalhos mais formais. Ouvir um moço qualquer me chamando de patrão, excelência ou doutor era uma novidade absurda pra mim. Eu me sentia, talvez pela primeira vez, um homem digno.

- NELSON! - ouvi meu nome em alto e bom som, era um som grave, como se uma foca estivesse me chamando.

Continuei minha marcha despretensiosa. Eu ziguezagueava com frequência, meus passos sempre foram vacilantes, o que me fazia suspeitar, ao menos uma vez por dia, de uma espécie de AVC iminente. Aquela espécie de foca continuou a me chamar, mas desta vez, meu nome vinha seguido de barulho de passos rápidos. Respirei fundo e preparei uma expressão de surpresa.

- Meu Deus, Nelson! Você? Você aqui em Brasília? - meu cérebro começou a mexer nas fichas de contato.
- Acho que sou eu... - balbuciei alguns ruídos prolongados - e você? Quem é?

Antes que ele respondesse, meu cérebro puxou a ficha do infeliz. Fiz expressão de decepção misturada com surpresa sincera.

- Eu sou o Caio, pô! Namorava a melhor amiga da Amanda, sua ex, lembra? - a boca dele era enorme. Um homem com mais de 30 anos usando aparelho é repugnante.
- Caio, eu sei quem é você, caralho. Mas você é muito atrevido, não?
- Como assim, cara? Não entendi - seu rosto tomou a forma de um ponto de interrogação, enquanto ensaiava um abraço, com os braços levemente erguidos.
- Além de atrevido, é cínico também! Que maravilha! - minhas mãos começavam a ferver.
- Mas Neeeeelson, o que eu fiz pra você? Você não está me confundindo? Eu sou o Caio, morava no Sacomã, lá em São Paulo! - recolheu suas mãos junto ao peito, com aquele rosto envelhecido.
- Eu sei quem é você, Caio, por Deus, eu sei quem é você! Você é o cara que, quando terminei o namoro com a Amanda - fiz um sinal de 'abre aspas' arqueando levemente minha postura pra frente -, acabou ficando com ela. Logo você, Caio! E nem escondia!
- Cara, eu não fiquei com a Amanda! Eu juro!
- Odeio quem não respeita juramentos, fica jurando a esmo! Não te dou uma lição aqui porque estamos na Câmara. Se não, que Deus me ajude, eu te daria uma surra!
- Nelson, de onde você tirou essa história?
- Da boca das pessoas, das redes sociais com as fotos de você saindo com ela... - fui interrompido.
- Peraê! Vai me dizer que agora você é de ouvir picuinha, fofoc... - interrompi o desgraçado também.
- E DA BOCA DA AMANDA! - as pessoas passavam atônitas com minha reação. Ver aquele bando de assessores bem apessoados, com seus crachás balançando no peito, me encarando com feição confusa, me fez acalmar o facho. A assessora loira e brava que me deixa intrigado diariamente, surgiu do nada, me olhou de soslaio e passou como um raio. Me contive.
- Oh... ela te contou então? - Caio exibia traços de uma criança com calvície. Aquela bochecha infantil, rosada me deixava mais possesso.
- Olha, é muito atrevimento da sua parte. Saia da minha frente - fechei os olhos, erguendo meu rosto, típico comportamento da aristocracia francesa diante de conflitos familiares.
- Mas Nelson...
- Mas o quê? Acha que só porque houve uma coincidência das grandes e nos encontramos em Brasília, só porque o mundo é pequeno, o passado está limpo? Que tipo de homem você é?
- Me perdoe cara. Pensei que poderíamos voltar a nos falar, pelos velhos tempos.
- Caio, eu não gosto de você. Não tem velhos tempos. Não suporto seu aparelho, sua careca prematura, esse nariz pontudo, essa sua cara de mórmon.
- Cara de mórmon? - o aparelho dele refletiu um raio de luz.
- Todos os mórmons que conheci na vida, tinham seus traços. Você deve ser algum missionário, só pode ser. Pelo menos você é chato como um deles!
- Desisto. Me desculpe por tomar o seu precioso tempo, Nelson. Espero que esteja tudo bem com você.
- Tá vendo? Parece um maldito mórmon falando. A não ser que esteja sendo irônico - aponteio dedo pra ele.
- Não estou sendo. Bem, que se dane. Até um dia.

Caio passou por mim com indiferença no olhar e passos firmes. Senti seu perfume, doce e forte, o que me fez sentir mais raiva dele. Com certeza eu ficaria com dor de cabeça. Pensei em como fui rude e me senti bem. Coloquei a mão nos bolsos e voltei a caminhar, com o ritmo que havia descrito no começo. Ritmo vagaroso, coisa que até estranhei no começo, quando cheguei na capital do país.

Lembro que meses antes de decidir vir para cá, lia uma reportagem, em alguma revista de turismo, onde descreviam o cotidiano dos brasilienses. Engravatados pegando mangas em árvores. Umidade abaixo dos dez porcento, vias sem calçadas para pedestre (provavelmente eu seja o maior pedestre de todos os tempos). Sentado no vaso sanitário vaticinei: "jamais tocarei meus pés sofridos e maltratados naquela cidade planejada". Mas como sou um espécie de contradição encarnada, cá estou. Na verdade, São Paulo me cansou por uma série de coisas. Sim, espancamentos estão na lista. E demorei meses pra me recuperar da última sova que tomei em Congonhas. Mas aquele episódio acabou por ser tão benéfico, veja bem, sofri por algumas semanas pelo fim do meu relacionamento. Foi justo, eu fiz merda, todo segredo é revelado um dia, mas por Deus, não precisava ser antecedido por um espancamento covarde. Já coleciono dois espancamentos e aquilo realmente dói. E aqueles chutes nas costelas, de alguma forma, resvalaram em minha alma e, como todo mundo sabe, dor da alma é difícil de tratar. E eu não sou um homem religioso, não consigo acreditar que uma força invisível cure minhas dores. Por isso bebo. Mas isso é outro papo, muito complicado.

Cheguei em Brasília para trabalhar, a convite de um amigo. O velho Abel, sabe Deus o motivo, confia muito em mim. E de passo em passo, vacilantes em alguns momentos, cheguei na Câmara dos Deputados. Assessoria de imprensa de deputado. Nem eu acredito, mas a verdade é que eu, que perambulava de bar em bar na Terra da Garoa, coleciono hoje caminhadas épicas pela Esplanada dos Ministérios.

Às vezes me sinto como um cidadão de Oran, daquele livro do Camus, A Peste. A saudade da família e de alguns amigos é imensurável. Em muitos momentos, me flagro pensando neles. Mas vejo uma espécie de muralha no entorno do Distrito Federal. É claro que já pensei em votar para minha cidade. Mas algo aqui me atrai. Não sei se é a mudança dos hábitos. Eu sempre quis ser o que sou hoje. Mas ao mesmo tempo, me sinto preso, privado de tudo que amo. E quase tenho um derrame ao pensar no paradoxo dessa sensação. Eu amo muitas coisas aqui. Brasília me ensinou a encarar a vida como homem, de peito aberto e rosto erguido. E aos poucos colecionei pessoas amadas, que me fazem lembrar frequentemente quem eu sou. Eu sou a contradição encarnada.

Eu sei que essa balela de contradição encarnada já encheu o saco. Mas esse sou eu. Em passos vacilantes. Repetitivo. Enchendo o saco.


quinta-feira, julho 19, 2012

Dois Milagres


Chovia muito lá fora.

- Não sei, cara. Não sei se tenho uma ideia de mulher perfeita. Pra ser sincero, não ando muito seletivo - teci meu comentário sobre o velho assunto desgastante.
- A ideia da mulher perfeita nos leva ao amor. O amor pra mim não existe. É um mito criado no decorrer da evolução humana. É simples assim. Os animais não amam. Se reproduzem e saem fora pra caçar, sei lá - Ernesto é a frieza em pessoa, pragmático ao extremo, um cientista do subterrâneo. Jamais se apaixonou.
- Se uma cabrocha casasse com um pedaço de gelo, teria mais emoção do que casando com você - Artur replicou enquanto levantava para ir ao banheiro - Vou mijar.
- Eu só acho que os sentimentos que não são instintivos são superestimados pela sociedade - Ernesto continuou com a voz mais baixa.
- E o que você diz dos pinguins e sua fidelidade? - desafiei enquanto meu olhar passeava pela sala em busca do maço de cigarros.
- Isso é uma necessidade devido ao ambiente que eles vivem. Devido ao esforço da fêmea ao botar um ovo. O macho cuida de tudo porque quer garantir a continuação da família, instinto que qualquer animal tem.
- Do que vocês estão falando? - Artur voltava do banheiro.
- Fidelidade dos pinguins - respondi enquanto acendia o cigarro.
- Deixe eu terminar - interrompeu Ernesto - E desde quando fidelidade é amor? O cachorro é fiel ao homem por instinto, a genética dele foi modificada ao passar do tempo, desde quando o homem começou a domesticar esse animal.
- E por que o amor não pode ser transformado em instinto? - Artur parecia mais irritado que curioso.
- Pra mim o amor é fruto de uma mente evoluída. O cérebro humano à partir do momento que pode pensar e criar, pode criar ilusões relacionadas aos instintos. Temos o dom de complicar as coisas.
- E como você acha que os seres humanos deveriam viver? - era minha vez de perguntar, ou melhor,  provocar.
- Artur, me passe a garrafa de licor, por favor - pediu Ernesto enquanto se acomodava no sofá.

O licor era de chocolate, bebida que eu julgava fraca. Mas era um deleite para Ernesto, que tinha suas peculiaridades. Ernesto despejou uma boa quantidade do líquido leitoso e escuro em seu copo e continuou:

- O que eu acho? Se dependesse de mim, todo mundo transaria só pra reprodução e claro, teríamos que reproduzir muito, engravidando várias mulheres.
- Eu não consigo imaginar o mundo assim. A mulher só seria comida se estivesse no cio? Não, obrigado. Prefiro a putaria humana mesmo - Artur falava em tom jocoso, abrindo sua caixa de cigarros.
- E você, Artur? Tem alguma ideia de mulher perfeita? - eu era o maldito moderador da conversa.
- Eu sou um maldito romântico, tenho que confessar.
- O que isso significa? Está esperando achar uma princesa encantada nos puteiros que você frequenta? - Ernesto despejou ácido como resposta aos deboches.
- Você com essa maldita cara de Matt Dylon, sempre com esse sorrisinho tímido no rosto... não tem muito o que dizer de mim.
- O que tem a minha cara com o Matt Dylon? E o que essa suposta semelhança tem a ver com o assunto? Estou confuso - Ernesto exibia o sorriso descrito por Artur.
- Esqueça - pigarreou por alguns segundos e continuou -  Minha mulher ideal tem o corpo e o rosto da Helena Ramos nos tempos áureos.
- Quem diabos é Helena Ramos? - interrompi o diálogo tentando buscar essa mulher em meu arquivo mental.
- Você não conhece a Helena Ramos? Nunca viu nada sobre Helena Ramos? - Artur se exaltava impressionado, como se visse um matemático que não soubesse somar.
- Não, nunca ouvi falar. Você já ouvi falar dela, Ernesto? - joguei a peteca para meu amigo.
- Nunca vi mais gorda - um resquício de licor se alojava ao lado da boca de Ernesto. Não me manifestei.
- Gorda? Vai se foder, Ernesto! Ela é a musa da pornochanchada! Ela é maravilhosa! - falando isso, puxou sua carteira do bolso traseiro e puxou um papel dobrado.

Artur abriu o papel e exibiu orgulhoso uma foto de Helena Ramos mal impressa por uma impressora jato de tinta.

- Você é um maníaco, Artur - Ernesto já não tinha mais o sorrisinho no rosto. Estava claramente chocado.
- Por Deus, Artur, que porra de foto é essa em sua carteira? Seu pervertido! - ao dizer isso, estendi meu braço e tentei capturar a foto, mas ele com reflexo felino escapou do meu bote.
- O que foi? Qual é o problema? - perguntava defendendo a foto, abraçando-a - Problema seria se fosse um homem, seus linchadores de idosos.
- Você é um garoto punheteiro, apenas isso - respondi com feição perplexa.

Artur devolveu a foto à carteira e sentou no chão.

- Ela é ou não é linda?
- É, realmente é maravilhosa. A típica gostosa brasileira.
- Então, essa é a mulher perfeita, falando da parte física, é claro - Artur fez uma pausa e quando Ernesto ia começar a falar, fez um gesto com a mão direita, como se pedisse a palavra - Ainda não terminei, Ernesto, seu falastrão. Odeio que me interrompam, você não faz ideia disso, camarada.
- Fique a vontade e me poupe disso tudo... - Ernesto levantou-se e foi ao banheiro novamente.
- A minha mulher ideal teria que cantar como a Elis Regina. Teria que cantar os versos de "Me Deixas Louca". Eu fico embriagado quando ouço a Elis cantando essa música. Ficaria em estado de ataque se uma mulher cantasse essa música pra mim.
- Estado de ataque? - Ernesto questionou em voz alta, direto do banheiro.
- Um estado diferente do estado vacilante em que você frequentemente vive.

Ao terminar sua resposta em voz alta, Artur continuou:

- O estado do verdadeiro homem primitivo, diante de sua caça. Louco, faminto pela carne de sua presa. Acho que é isso... Isso que é instinto, Ernesto! Eu, Artur Gonçalves, louco pelas tenras carnes de um híbrido de Elis Regina e Helena Ramos. Deus do céu, quem me dera... - literalmente Artur suspirou e desabou no sofá após tamanho discurso emocionado.

Eu já havia deixado de ficar chocado há tempos com essas reações e palavreado démodé do Artur. Ele é um bom rapaz, sempre com lapsos de grandes ambições, que acabam sufocadas por sua personalidade acanhada. Ele apenas fica a vontade entre amigos. Diante da sociedade é um ser obscuro e desconfiado.

- Pois bem, meus amigos, - me ergui do sofá e com um copinho de cerveja à mão e pedi a atenção para mim - eu preciso contar sobre uma mulher. Ela não é perfeita, mas se trata de um perfeito equilíbrio. Ela existe, mas é uma confusão extrema. A intensidade de tesão que sinto por ela é a mesma do desespero que ela me faz sentir, esse é o equilíbrio.
- Como assim desespero? Ela tem enfiado o dedo no seu anel enquanto trepam? - Artur perguntou em tom de sarro.
- Não, não... Antes fosse! Daria meu cu pra ver esse desespero sumir. Mas a merda está feita e como sempre, me envolvo com cadelas desgraçadas, sem sentimento algum ou então com sentimentos demais.
- Isso é verdade! Eu nunca vi alguém para atrair tantas mulheres vis! - Artur continuava interagindo.

Ernesto ficava observando, esfregando o queixo com dois dedos, com aquele sorriso discreto no canto direito da boca, analisando a história.

- Enfim, é uma jornalista lá do Sul. De Santa Maria. Rio Grande do Sul. Dos pampas. Terra de veados. Terra de Getúlio!
- Tá, tá... Sabemos disso tudo. Continue! - Ernesto quebrou seu silêncio.
- Pois bem, eu a comi. Foi uma cilada! Eu juro! - resolvi dar uma pausa para acender um cigarro. Esses assuntos pedem um bom cigarro.
- Cilada? Como assim, homem? Pare de fazer suspense e seja direto! - Artur estava ansioso, inquieto.

Soprei uma boa quantidade de fumaça em direção ao rosto de Artur e o observei tentar se desvencilhar dos jatos acinzentados.

- Ela me chamou para sua despedida, um almoço na casa dela, numa sexta-feira. Eu pensava que seria uma reunião entre amigos dela e não vi problema algum, afinal, é sempre bom aumentar nossa lista de contatos. Fui na melhor das intenções, juro! Nunca havíamos tido nada, nem sequer um beijinho, tudo estritamente profissional. Levei um livro de presente, com dedicatória e tudo mais. Ao chegar no apartamento dela, apenas o tio gay dela estava lá. O tio é o dono do apartamento, ela apenas estava hospedada lá.
- O tio quis te comer? Quis participar ao menos? - Ernesto e aquele maldito sorriso na boca, no canto direito.
- Vou ignorar essas perguntas e continuar a história, seu filho da puta - respondi apontando a brasa do cigarro para ele - Então, aí a merda começou a acontecer. Almoçamos nós três e em seguida, o tio se levantou limpando a boca com o guardanapo e disse: "é isso pessoal, o almoço estava ótimo mas preciso ir". Eu olhei para ela, e o seu olhar era pura malícia, como se dissesse por telepatia: "agora você é meu, garotão". Por Deus, comecei a suar muito, e ao mesmo tempo sentir tesão por ela.
- Era disso que você falava quando se referia à intensidade do tesão ser a mesma do desespero? - Artur questionou com olhar analítico.
- Não! Calma! Isso é só o princípio da bosta. O roteiro foi seguido perfeitamente. Nos jogamos na cama dela e fodemos por uma hora seguida. Tive uma linda performance, é sério. As pernas dela tremiam! Segundo ela, fazia tempo que ela não fazia nada de sexo. Ela me disse que deixou o marido lá no Sul pra fazer um trabalho aqui. Vê se pode?
- Casada, devassa... É um raro exemplar que não se deixa passar, hein? São sigilosas, carentes, loucas na cama.
- Sigilosa? Uma ova! É aí que mora o problema, Ernesto! A vadia vai foder com meu relacionamento. Ela disse que vai largar o marido e me caçar aqui em São Paulo. Ela é louca!
- Mas você não está em crise no namoro com a Elisa? Você disse que já terminaram várias vezes, por que o desespero? Talvez seja disso que você precise para terminar de vez.
- Ernesto, você é louco, só pode ser! Eu não termino de vez porque amo a Elisa, porra. Tô tentando fazer dar certo.
- Ama tanto que se esbaldou na vulva da chinoca gaúcha, não foi? - Artur e seu linguajar inadequado.
- Artur, quem é você pra questionar meu amor? Aliás, vão tomar no meio dos seus cus! Não tô pedindo conselho sentimental, não estou numa maldita terapia ou estou?
- Só constatei o óbvio - Artur agora falava baixo, em tom de escusa.
- Olha só, ela disse que vai causar escândalo, vai arrombar a porta do meu apartamento, que vai perturbar minha namorada. Vai falar tudo. Ela é louca!

Eu realmente me vi desesperado, e isso já havia acontecido em relação ao ocorrido. Mas diante dos meus amigos, o medo foi potencializado. Talvez porque tenha me mostrado frágil demais diante deles, não sei. Mas eu estava apavorado, ansioso, com dormência bem leve nas pontas dos dedos. Era terrível.

- Meu amigo, você está em maus lençóis.
- Artur, você não ajuda muito falando isso - Ernesto interrompeu.
- Me desculpe, foi apenas um comentário - novamente em voz baixa, Artur se constrangeu

Ficamos pensativos, como se estivéssemos tendo alucinações, observando seres encantados voando pelo ar.

Que tal abrirmos um scotch? Bebericar até ficar de pileque é sempre uma boa saída. Temporária, eu sei, mas é - propôs Artur.
- Só tenho Jack Daniels aqui, nada de scotch.
- Vou lá no mercado comprar, você merece, meu camarada - Artur se levantou e tomou o rumo da porta.
- Vamos tomar o Jack mesmo!
- Odeio Jack Daniels - dizendo isso, fechou a porta.

Ernesto e eu trocamos olhares por alguns segundos, ambos perplexos, e logo em seguida, dirigimos nossos olhos para o chão.

- E o que pensa em fazer, Nelson?
- Eu não sei, eu não sei. Tenho o quê fazer? Não imagino uma saída.
- Sei lá. Polícia, denúncia, fuga no meio da noite, terminar o namoro e segurar o rojão... - Ernesto balbuciava algumas soluções enquanto tinha o olhar fixo para seu copo vazio, com alguns resquícios de licor.
- Não, não. Nada disso...
- Por que não mata a vagabunda?

Dei uma risada e continuei com olhar fixo para a lâmpada acesa.

- Vai pirar igual o Maulin? Que enlouqueceu e achava que era uma mariposa? Ficava olhando para a luz, sem poder se mexer, lembra?
- Lembro sim, pobre diabo.
- Ao menos se livrou da Agnes, aquela pedra no sapato. Tá vendo? A morte às vezes é a solução.
- Ernesto, pela alma dos santos martirizados, pare de falar em assassinato. Me desculpe, mas tenho dignidade.
- Dignidade, quem disse que isso é algo? Você tem que viver os instintos! Você tem que se preservar! Ela vai foder sua vida, Nelson! ACORDA! - num salto repentino, Ernesto gritou e logo foi ao banheiro.
- Por que você não caga no chão e mija em postes? Vá se foder com essa sua ausência de espírito, com todos os instintos animais! Daqui a pouco você estará numa selva, liderando um bando de macacos - gritei olhando para trás, para a direção do banheiro.
- Bem, na verdade quem vai se foder é você!
- Vá pro inferno, seu... Tarzan!

Levantei do sofá e peguei três copos de uísque e os coloquei na mesa de centro. Liguei o som e deixei Tom Zé tocando. O bom, velho e louco Tom Zé, não se fazem mais gênios como ele. Deitei no sofá, com as mãos atrás da nuca e vi um filme, projetado no teto da sala, de um possível homicídio cometido por mim, contra a vaca da Cecile. Senti uma pequena vertigem, um curto enjoo. Meu coração pulou e bateu intenso, enlouquecido. E de repente, voltou ao normal. Eu odeio ficar ansioso, como odeio.

- Pára de enlouquecer, veado - Ernesto deu um chute leve na minha costela.
- Me deixe em paz, rei da floresta...
- Não fique assim. Ela vai chegar em Santa Maria e vai reconsiderar, vai te esquecer. Aliás, você devia se desesperar somente quando ela ligar e avisar que tem voo comprado pra São Paulo, não acha?
- Faz sentido. Mas eu não consigo parar de pensar nisso. Ela me manda mensagens, ela é louca! Quando esqueço, por alguns minutos, ela me manda uma mensagem de texto. Filha de uma puta...
- Ela já foi embora?
- Não, vai embora amanhã, no meio da tarde, eu acho.
- Então vá lá conversar com ela! Vá no aeroporto, converse numa boa, faça um apelo sem mostrar desespero. Seja convincente!
- É uma boa ideia. Embora eu tenha quase certeza de que nada vai fazê-la mudar de ideia. Mas é válido.

Levantei do sofá e peguei meu celular. Liguei para a vagabunda.

- Alô, Cecile?
- Oi meu AMOR! Como está? Está com saudades? - a voz dela era puro entusiasmo.
- Hummm, tudo bem por aqui... E você?
- Sim! Está com saudades ou não?
- É.
- É?
- É isso - eu queria que o Ernesto não estivesse ali. Era o Nelson medroso e frouxo que falava ao telefone, não o Nelson corajoso, que enfrenta os desafios aos trancos e barrancos.
- Não estou sentindo muita firmeza nisso! É igual responder a um "eu te amo" com "obrigado"!
- Sim, estou.
- Melhor assim! Olha só, avisei ao meu marido que quero conversar sério com ele. Sou determinada, QUANDO QUERO, EU CONSIGO! - e riu malevolamente, uma maldita serpente diabólica.
- Deus de amor... Você está certa disso? - eu suava em bicas.
- Sim
! ESTOU CERTA! - gritava como se estivesse reclamando num atendimento de um serviço qualquer.

Cada palavra dela de determinação fazia meu cu piscar de medo.

- E se eu não quiser, Cecile? Como você acha que pode obrigar alguém a gostar de você? Como pode tentar obrigar alguém a te amar? Não acredito que tenho que falar sobre isso com uma mulher adulta, esposa e mãe de filhos... - passei a palma da mão na testa, em sinal de desespero.
- VOCÊ VAI ME AMAR! VOCÊ VAI QUERER ME AMAR, VAI BEIJAR MINHA BUNDA!

Senti algo molhar a parte traseira da minha cueca. Literalmente me caguei. O frio na barriga era intenso.

- Misericórdia... Bem, vamos nos encontrar no aeroporto? O que acha? Amanhã, para me despedir de você. Peço uma folga na parte da tarde. Meu banco de horas está imenso mesmo...
- QUE MARAVILHA! Está combinado! Me encontre às duas e meia, ali perto do check-in da TAM. Congonhas, hein?
- Tá certo, tá certo. Duas e meia, check-in da TAM em Congonhas.
- Ótimo, meu AMOR! Nos vemos lá! Beijos, lindo!
- Beijos, Cecile.
- TE AMO.

Pensei em responder "obrigado", mas eu queria ser diplomático. Queria minha paz de volta.

- Beijos, querida.
- NÃO VAI RESPONDER AO MEU "EU TE AMO"?
- Deus do céu, Cecile, você ainda não me ama.
- EU-TE-AMO, Nelson! - eu tinha dó das pessoas ao lado dela, onde quer que ela estivesse.
- Que seja, amanhã nos vemos.

Desliguei o telefone. Antes que ela me aprisionasse via telefone. Olhei constrangido para Ernesto.

- Que grande merda, Nelson. Vamos pensar em algo, cara. Você vai ter que ser persuasivo amanhã. Caso não dê certo, diga que gosta de homens, ou tem fantasia por sexo com animais, que sonha em casar com uma chipanzé ou um pinguim.
- Já chega, Ernesto. Amanhã será amanhã. Vou trocar minha cueca pois acho que me borrei aqui - saí andando lentamente, com as pernas abertas.
- Eu não acredito nisso! Está cagando de medo de uma mulher! - Ernesto chorava de rir, deitado no chão.

Ignorei as gargalhadas e me troquei. Havia uma linda freada de caminhão lá atrás. Aproveitei pra cagar o material que estava me importunando. Depois caminhei até a geladeira e percebi que havia apenas uma lata de cerveja. Peguei o celular e liguei para Artur, mas enquanto o celular chamava, ele bateu à porta. Atendi.

- Queridos, bebamos e morramos - Artur chegou com uma garrafa de Red Label e uma caixa de cervejas.
- Caralho, que maravilha! A cerveja estava acabando eu até te liguei, mas você estava aqui no corredor...
- Eu havia bisbilhotado a geladeira e notei a ausência do líquido dourado.
- Valeu cara, eu pago pelas cervejas.
- Cortesia minha, meu amado companheiro, cortesia minha.

Agradeci a cortesia e abri uma lata. Joguei uma para Ernesto e novamente estávamos sentados, gozando de um pouco de silêncio. Artur chegou.


- Bebamos e morramos! - ergueu seu copo de uísque sem gelo, apenas dois terços de água e um de uísque.
- Você só sabe falar isso? - Ernesto se indignou.
- Ficou valente com seu licor? Perdeu o juízo, meu irmão?
- Vou te mostrar o seu irmão...

Quando Ernesto ensaiou se levantar, eu coloquei minhas mãos em seu ombros e o mandei ficar sentado. Artur já estava em pé, ensaiando algum gingado precário de boxe.

- E chega por hoje, Artur. Parecem duas bichas.
- Foi ele quem começou - Artur apontava para Ernesto com feição de criança ofendida.

Bebemos muito. Bebemos a garrafa toda. Bebemos todas as latas. E eu não via mais nada, apenas sentia a embriaguez, a leveza das pernas, a facilidade na fala. A facilidade em antipatizar com as pessoas quando estou bêbado. E como é de praxe, expulsei as visitas do meu apartamento. Me lancei contra meus dois amigos, com violência e os puxei pelas camisetas. Abri a porta com uma faca grande e afiada nas mãos.

- Pra fora! As duas maricas pra fora! - vociferei golpeando o ar com a faca. Golpes diagonais.
- Pare com isso, já estou me retirando! - Artur estava trêmulo como sempre. Uma menina diante do perigo.
- Você me paga, Nelson. Você me paga, ouviu? - Ernesto era corajoso, frio, mas temia levar facadas a toa.
- Saiam daqui, seus covardes! Saiam daqui! - eu gritava no corredor do meu andar. Os vizinhos estavam acostumados a ouvir as minhas baixarias. Eu sempre expulsei amigos ou amigas, independente do horário.

No outro dia acordei com ressaca forte. A mistura de cervejas e uísques nunca davam certo em meu corpo. Acordei ainda tonto, me arrastei pelado até o banheiro e deitei no chão do box. Espichei meu braço direito e por alguns milímetros, não alcancei a torneira do chuveiro. Me ergui lentamente e consegui. A água caía gelada, o que me fez levantar de supetão. Regulei a água, pacientemente, sentindo náuseas. A água enfim estava morna e consegui deitar novamente. Por fim, senti um espasmo no esôfago e virei o rosto para a esquerda. Vomitei muito. Vômito marrom, acompanhado por amendoins mal mastigados e uns pedaços de folhas escurecidas. Quando senti que a coisa ficou séria, me ajoelhei e continuei a vomitar. Magnífico.

- Cristo amado, que maravilha - balbuciei dando um pequeno sorriso.

Vomitar impurezas faz bem. A ressaca perde suas rédeas e nos desvencilhamos de sua tortura. Levantei confiante e com oitenta por cento a menos de dor de cabeça. Vomitar é um milagre. Saí revigorado do banho e me troquei rapidamente. Corri até o ônibus e fui até o metrô, sim, o mesmo maldito caminho de todos os dias. Peguei o trem na Barra Funda e confesso que ainda senti um calafrio. Ser linchado num trem é algo indescritível. Apenas sinto as dores dos socos e ponta-pés que tomei naquele dia. Já cruzei com alguns dos idiotas que me espancaram e eles ao me reconhecerem, desviam o olhar, num constrangimento para os dois lados. Lembro de poucos rostos, mas infelizmente eles voltam para casa no mesmo trem que eu e eles simplesmente aparecem no meu caminho. A vida segue, como se nada tivesse acontecido, assim é o mundo. Cheguei em meu trabalho e falei com meu chefe imediato. Falei que tinha uma pendência urgente para resolver e precisaria da tarde. Pra variar, ele contestou, disse que a situação era crítica na empresa e que ele precisaria de mim. Eu repliquei que não conseguiria trabalhar, que eu estava com horas e mais horas no banco de horas e que aquilo era meu direito. Depois de uma leve discussão, consegui a folga. Fiquei chateado porque sabia que ele iria me perturbar a vida nos dias seguintes, me sobrecarregando de trabalho, graças a essa folga, graças a maldita Cecile. Mas tinha que ser assim, sempre foi assim. Trabalhei até o horário do almoço e saí correndo. Fui até a avenida Paulista e peguei um ônibus azul, Aeroporto. Cheguei às duas e quinze e resolvi comer algo mas ao ver os preços, mudei de ideia. Comprei uma cerveja, muito cara por sinal, mas eu precisava da cerveja, ao menos isso. Cheguei no check-in da TAM às duas e vinte e seis e ela já estava lá. Quando ela me avistou, abriu os braços e correu em minha direção, como se eu fosse uma zebra e ela uma leoa faminta:

- MEU AMOR! - ela gritou, gritou bem alto, as pessoas paravam para olhar.
- Oi Cecile, tudo bem? - respondi segundos antes de ser esmagado por um abraço bem efusivo. Ganhei alguns beijos na boca.
- Você é pontual! Espero que meu avião não seja! QUERIA FICAR COM VOCÊ POR MAIS HORAS!

Senti um tremor no joelho. Minha barriga começou a gelar, lembrei que me borrei no dia anterior e constatei que dessa vez iria me cagar todo.

- É... Vamos nos sentar? Precisamos conversar.
- Claro, MEU AMOR!
- Você pode parar de gritar, Cecile? Deus eterno...
- Vamos nos sentar! ESTOU ANSIOSA POR SUAS PALAVRAS!

Um peido forçou sua saída, mas eu o prendi com maestria. Andei lentamente para não soltá-lo bruscamente. Sentamos em frente a um quiosque de café, perto da escada rolante que leva ao embarque. Fui ao caixa e pedi dois cafés. Levei-os à mesa e sentei, sem encostar as costas no encosto da cadeira. Eu escondia meu olhar do olhar dela, mas os olhos dela brilhavam como os de uma criança em manhã de natal.

- Pois bem, Cecile...
- ESTOU TÃO FELIZ POR VOCÊ TER VINDO SE DESPEDIR DE MIM! É MUITO AMOR! - fui interrompido.
- Cecile, é o seguinte...
- DIGA, MEU AMORZINHO! - interrompido novamente.
- Tá certo - fiz uma pausa para respirar e olhei para a espuma do café - Vamos lá, nós não podemos continuar com isso. Eu namoro, você é casada e tem dois filhos! Não podemos levar isso adiante! Não mesmo!
- VOCÊ ESTÁ ME DISPENSANDO? É ISSO, AMOR?
- Por que você faz as coisas se tornarem mais difíceis?
- Se você me dispensar, vou transformar sua vida num inferno! Você já tentou me dispensar lá na casa do meu tio! E voltou atrás dessa ideia idiota, não foi! E agora quer me dispensar de novo? EU FIZ TUDO POR VOCÊ! VOU LARGAR MEU MARIDO POR VOCÊ!
- Shhhhhhh! - pedi silêncio a ela, com olhar constrangido, direcionado às pessoas que estavam nos observando - Silêncio! Não grite! Ninguém precisa saber dos nossos problemas! - sussurrei como se quisesse gritar com ela.
- VOCÊ SÓ QUERIA SEXO, NÃO? SÓ QUERIA ME COMER!
- Pare de gritar, por Deus, pare! - mais sussurros.
- Pois bem, senhor Nelson. Você vai ter o que merece! Aguarde por notícias minhas... - de repente ela se conteve e falou me olhando soturnamente.
- Eu só quero resolver essa situação numa boa, sem estresse pra você. Me ajude nisso! - meu desespero podia ser tocado.
- Vou fumar ali fora. Não me siga! VOCÊ TERÁ NOTÍCIAS MINHAS! - e saiu com aquele bundão enorme, rebolando e com passos fortes, fazendo os saltos altos estalarem no chão.

Pensei seriamente em correr para o banheiro e cagar todo meu medo e apreensão. Ensaiei levantar e segui-la, fazê-la desistir da ambição louca dela, mas fiquei sentado, seria mais escândalo e provavelmente ela iria partir pra cima de mim. Pensei que se tomasse café, ficaria ainda mais agitado. Mandei meus pensamentos para o inferno e tomei o meu café. As pessoas me olhavam com piedade, sabiam dos meus problemas, mas ninguém queria resolve-los. Maldita humanidade. Fiquei ali por um tempo, e ela não saía da parte de fora. Fui verificar e ela estava se acabando nos cigarros. Olhei no painel de voos e percebi que o voo dela saía em uma hora, mais ou menos. Cinco minutos depois, ela passou como um raio por mim. Senti vapores quentes saindo de suas ventas, como se Satanás, numa versão rabuda, passasse por mim rumo ao submundo. Senti um calafrio e também senti o perfume dela, maldito perfume. Não lembrava o nome, mas era o mesmo de uma antiga namoradinha. Lá se foi a boa lembrança que eu tinha com essa fragrância.

A última visão que tive dela foi na entrada da área de embarque. Eu a segui sorrateiramente, como um detetive aposentado. Passou sua bagagem de mão no detector de metal, cumprimentou a todos os funcionários da Infraero e sumiu de minha vista. Fiquei observando, paralisado, todo o tráfego intenso de pessoas naquela tarde de sexta-feira. Pra variar, um caos no aeroporto, muitas reclamações, da maior variedade. E eu no meio daquele fuzuê, paralisado. Sentei numa cadeira e fiquei ali, olhando para o painel. Apenas olhava, não prestava atenção em nada. Assim fiquei por uma hora, pensando no que seria da minha vida a partir daquela tarde. Já imaginava ligações enlouquecidas para a pobre da minha Elisa. E falando nela, recebi uma ligação dela. Obviamente ignorei a chamada. Não dava pra atendê-la. Ela iria me perguntar onde eu estava, fazendo o quê, por quê e além do mais, ela ouviria o barulho do auto-falante do aeroporto e ficaria ensandecida querendo saber o que eu estava fazendo no aeroporto. De vez em quando, eu pensava em terminar com ela. Seria mais fácil. Ela se tornara um monstro que só cuspia reclamações e pragas. Mas eu a amava. Como a amava. Ficar naquela situação de brigas e discussões acabava comigo. Queria paz com ela, tudo o que mais queria era paz com a Elisa.

Fiquei ali na espreita, numa tocaia sem sentido (já que a Cecile não sairia mais dali), ao lado da entrada da área de embarque, e lá de dentro ouvi o auto-falante:

- ATENÇÃO CLIENTES DA TAM , DO VOO 3045 QUE VAI PARA PORTO ALEGRE, FAVOR SE DIRIGIR PARA O PORTÃO DE EMBARQUE DE NÚMERO 8, ONDE SERÁ FEITO O PROCEDIMENTO DE EMBARQUE.

Fiquei em pé enquanto meu coração explodia. Fui fumar alguns cigarros com outra cerveja que comprei. As pessoas percebiam minha inquietação, meus passos eram rápidos e sem direção. Eu queria que uma solução caísse do céu, mas como sempre, nada cai do céu. Sou cético demais para acreditar num milagre. Realmente eu estava fodido e ponto. Uma senhora quis puxar assunto comigo, mas eu a ignorei virando as costas. Ouvi algo parecido com "rapaz insolente". Ignorei o insulto. De repente parei e pensei: "o quê diabos estou fazendo aqui?". E realmente era inútil! Eu não sei o que me prendia ali. Olhei para o painel de voos e havia a notificação de que o embarque estava encerrado para Porto Alegre. "Deus do céu, leve essa mulher para longe e que ela nunca mais volte", pedi desesperado, em pensamento.

A tarde estava ensolarada, diferente do dia anterior, porém o tempo virou novamente. Muito comum em São Paulo. O céu escuro trovejava e espirrava suas primeiras gotas de chuva. Praguejei por isso, pois como toda pessoa normal, não costumo andar com guarda-chuva em dias de tempo aberto. Fui para fora e fiquei em uma parte coberta, onde outros desesperados fumavam intensamente, olhando para o nada. Uma cortina de fumaça cobria nossas cabeças. Era o último cigarro. Praguejei novamente. Peguei o isqueiro e nada do fogo acender. Tentava e apenas faíscas saíam. Praguejei mais um pouco. Tentei mais uma vez e quando o fogo apareceu, ouvi um estrondo enorme, jamais ouvido ou imaginado em minha vida. Foi terrível, como se o aeroporto tivesse desabado. Vi um clarão gigantesco à minha esquerda, saindo da avenida Washington Luís. As pessoas pularam para fora da parte coberta e se dividiram: uns corriam para dentro do aeroporto, outros corriam para a direção da avenida, curiosos para saberem o que havia causado tamanho clarão. Eu continuei fumando e erguendo a cabeça, procurando saber, ali de onde eu estava, o que poderia ter acontecido.

- Acho que um prédio desabou! - uma voz feminina gritou.
- Vamos lá ver! Vamos! - um grupo de três pessoas correram, parecendo cavalos selvagens galopando.
- Acho que foi um avião, cara! Acho que foi um avião! - um homem com os óculos tortos, afogado em terror gritava.

E quando o pobre diabo gritava que era um avião, as possibilidades se ligaram em minha cabeça.

- Qual avião? Qual voo?! - perguntei ao homem enlouquecido.
- Não sei! Não sei!
- Foi um da TAM! Foi um da TAM! - um  outrohomem apareceu, esverdeado pelo pavor, saltitando como se fosse um mensageiro de guerra.
- Alguém me diga qual foi o voo! PELO AMOR DE DEUS! - clamei aos céus, às pessoas, ao mundo.

Passaram minutos, poucos minutos que pareciam uma eternidade. Eu corria sem rumo junto com outros loucos sem rumo, na área onde eu fumava. Era um caos, parecia com filmes de cinema. Eu me sentia ridículo, totalmente ridículo. Eu queria saber se Cecile estava no voo, meu desespero era maldoso, horrível. Pessoas torcendo para que um ente querido não estivesse no avião e eu torcendo para que uma pessoa específica estivesse lá. Eu era o diabo em meio a anjos voando desorientados.

- Meu Deus! FOI O DE PORTO ALEGRE! FOI O VOO DE PORTO ALEGRE! MEU DEUS! - um homem horrorizado, desfigurado pelo terror, pela maldita revelação da tragédia. A tragédia havia batido à porta. Sim, aquela tragédia que ninguém espera acontecer jamais.

Quando eu ouvi 'PORTO ALEGRE', ajoelhei no chão e agradeci a Deus, gritando:

- OBRIGADO SENHOR! MILAGRES ACONTECEM! DEUS SEJA LOUVADO!

Na mesma hora o corre-corre fez um pausa e as pessoas se aproximaram lentamente. Todos transtornados, com cara de descrença e revolta. Olhei à minha volta e que Deus me ajude, era muita gente.

- MINHA FILHA ESTÁ NESSE VOO! - uma mulher gritou em prantos.
- VOCÊ NÃO
 TEM ALMA! TENHO NOJO DE VOCÊ, FILHO DA PUTA! - uma moça bonita, com seios grandes que balançavam enquanto ela gritava, apontava o dedo para mim.
- COMEMORANDO A QUEDA DE UM AVIÃO? VOCÊ É LOUCO? - um homem bem apessoado, de terno chegou em fúria, fazendo o sinal de loucura com o dedo girando ao lado da cabeça.
- Calma, minha gente, uma mulher maldosa ia estragar minha vida e ela estava naquele voo... - comecei a ter a sensação de morte, sim, a morte acariciava meu ombro novamente, como no trem - e ela estava naquele voo e...

Eu sei que não fazia sentido eu me explicar. Piorou tudo. Tudo mesmo. E quando eu olhei para os céus em busca de mais um milagre, descobri que dois milagres não caem do céu num mesmo dia. Um jovem de vinte e poucos anos, no auge de sua saúde, correu como aquele jogador da seleção de 94, o Branco, corria para bater uma falta. E o chute não deixou a desejar: pegou bem embaixo de minha axila direita. Senti alguns ossos tremerem intensamente. Dei um grito fino.

Daí pra frente, fugi em pensamento para um lugar lindo, onde minha querida Elisa não brigava comigo, apenas me amava e me desejava loucamente. É sério, estávamos há três meses sem sexo. Eu não acreditava naquilo.

Em seguida, senti uma solada na minha nuca. Que pisada incrível! Isso fez eu cair de cara no chão. Eu ainda ouvi a minha testa estalar no chão. Foi de uma violência incomparável. Eu já podia ser mártir cristão na Nigéria. Já tinha know-how suficiente pra apanhar por alguma causa nobre. Alguém pegou meu braço e o torceu para trás, malditos filhos das putas, era muito ódio, era muita dor. Por que as pessoas descontavam sua tristeza com ódio? Não poderiam amar mais? Poderiam me entender, onde estava a era de aquário? A era da compreensão e do entendimento? Onde estava a evolução humana?

- Vem cá, seu desgraçado! - era uma mulher sem os saltos, puxando meu cabelo e erguendo meu rosto.

Os tapas dela não doeram. E acho que ela percebeu que não tinha muita força e acabou pegando seu cigarro e queimando minha fronte. Isso doeu muito. Meu corpo era uma espécie de Judas da TAM para ser malhado em praça pública. Eles sabiam que teriam que processar a TAM, aparecer na TV emocionados, eu os entendia. Mas eles poderiam me compreender.

Por fim, eu apaguei, um pouco depois da queimada com o cigarro. A polícia não apareceu, ninguém, nenhuma autoridade. Nenhuma boa alma. Todas as autoridades estavam concentradas na explosão do avião. Maldito avião, maldito piloto estúpido. Provavelmente ele não conseguiu levantar voo e acabou caindo em plena avenida, se chocando contra algum prédio ao lado do aeroporto. E os amigos, parentes que presenciaram a minha presepada, cansaram de me bater. Engraçado como as pessoas cansam de espancar os outros. É como se fosse um exercício físico qualquer. Uma hora cansa.


Acordei em uma sala de hospital, totalmente imóvel, sem mexer nada. Mexer as sobrancelhas doía. Era terrível. E para meu desespero, a porta foi aberta bruscamente. Era Elisa e sua mãe entrando na sala. O amor da minha vida - pensei - com um buquê de flores na mão. Minha sogra não tão querida, vindo para desejar melhoras, uma boa recuperação. Cecile carbonizada dentro de um avião, Elisa sensibilizada pelo meu infortúnio, mais carinhosa do que nunca. Elisa começou a chorar, o que me fez pensar que ela estava emocionada por me ver daquele jeito, todo sofrido. Fiquei emocionado também, esboçando um sorriso discreto. Mas não era choro de tristeza, era de ódio.

- EU FIQUEI SABENDO DE TUDO, SEU FILHO DE UMA PUTA! – dizendo isso, começou a me surrar com o buquê de flores. Que buquê pesado, meu Deus do céu.

Eu não conseguia falar direito, apenas emitia sons incompreensíveis, bizarros. Eu grasnava como um grande e fodido pássaro desesperado. A mãe dela finalmente conseguiu contê-la, para meu alívio. E quando tudo parecia ter terminado, dona Ana bateu com o buquê na minha cara. Senti um espinho da rosa furar minha testa. Comecei a me balançar e fazer mais sons, até que a enfermeira chegou e afastou as duas loucas.

- EU SOUBE! A VADIA, A CECILE, AQUELA PUTA ME LIGOU HOJE! SEU FILHO DA PUTA! – Elisa rosnava e babava com ódio mortal, só faltou latir.

Meu desespero era aparente e doloroso. Doía mesmo, porque eu fazia expressões de dúvida, de desespero e isso doía muito.

- Como diabos a Cecile ligou para a Elisa? A Cecile está morta! Meu Deus, será que tive um derrame? Será que enlouqueci? - pensei atordoado, desesperado.

A enfermeira veio me acalmar e limpar meu corpo e a cama que ficaram cheios de pétalas e folhas. Cuidou do corte causado pelo espinho em minha testa. Mas nada disso me acalmou. Eu estava inquieto, afobado, querendo falar, gritar. Só saiam sons bizarros de minha pobre boca espancada. Eu já havia percebido a falta de alguns dentes. De repente ouvi a voz de um dos companheiros de quarto.

 - Enfermeira, ligue a televisão, pela cruz do Senhor, tenha compaixão - era um velho preto, parecia uma uva passa gigante, deitado, como se nada mais no mundo pudesse o tirar de lá.

A enfermeira disse que deixaria ligada apenas por meia hora. Era noite e um jornal dava algumas notícias. Fiquei atento esperando saber de algo. O corte do espinho na testa estava doendo.

- FAMILIARES DAS VÍTIMAS DO VOO JJ 3054 DA TAM AINDA NÃO SE MANIFESTARAM SOBRE OS PROCESSOS QUE SERÃO MOVIDOS CONTRA A COMPANHIA AÉREA. O ACIDENTE OCORREU NA ÚLTIMA TERÇA-FEIRA, QUANDO UM AVIÃO VINDO DO AEROPORTO SALGADO FILHO EM PORTO ALEGRE NÃO CONSEGUIU DESACELERAR NO PERCURSO DE POUSO E SE CHOCOU CONTRA UM DEPÓSITO DE CARGAS DA PRÓPRIA COMPANHIA - noticiou o âncora do jornal televisivo.

- O QUE? NÃO ESTAVA INDO PRA PORTO ALEGRE? ESTAVA VINDO DE PORTO ALEGRE?

Tentei me mexer, buscando algo para tentar um suicídio. Mas a ideia passou logo. Me conformei imóvel em minha cama de hospital. Tudo estava liquidado. Perdi meu relacionamento. A vadia da Cecile havia cumprido sua promessa e agora viria para São Paulo atrás de mim, maldita seja essa gaúcha. Naquela noite de tragédia, constatei que um segundo milagre não cai do céu num mesmo dia. Na verdade o segundo vem depois do primeiro. E no meu caso, nem o primeiro veio. Pensando melhor, veio sim, sobrevivi novamente. Pensando melhor, já são dois milagres.